sábado, 26 de fevereiro de 2011

Algo para calar fundo

Queria poder escrever um texto sem palavras. Um texto de silêncio, que pudesse calar fundo sobre algumas coisas que presenciamos e que temos certeza de que jamais vamos compreender.

Ontem, na noite da capital gaúcha, houve mais uma “bicicletada”: uma manifestação de um grupo de ciclistas ligado ao movimento Massa Crítica, que defende o uso da bicicleta como um meio de transporte mais democrático, ágil e sustentável. Mas, mais do que isso: o pessoal desse movimento questiona estruturas mais profundas da nossa sociedade, simbolizadas no uso agressivo dos meios de transporte (agressivo para o meio-ambiente, mas também agressivo para as pessoas). Dito de outra forma, procuram nos fazer refletir sobre as transformações que ainda ocorrem em ritmo vertiginoso à nossa volta.

Na manifestação, muitos homens e mulheres jovens, várias crianças, todos dispostos a dar algumas voltas de bicicletas pelas ruas da Cidade Baixa, bairro tradicional da capital gaúcha. E eis que um homem, deliberadamente, acelera seu carro sobre o grupo de manifestantes (que talvez fossem duzentas pessoas), atropelando cerca de quinze participantes.
Fonte: Jornal Zero Hora

É nesse momento que prefiro calar fundo. Um silêncio cheio de indignação, mas também cheio de vontade de gritar ao mundo o quanto não podemos nos manter calados. Não falem que foi acidente: ninguém acelera um carro “sem querer” em uma rua que provavelmente já estava com trânsito lento por causa da manifestação. Não me digam que o motorista foi irracional: a irracionalidade não nos permite premeditar a aceleração do automóvel, nem mesmo mirá-lo para um local específico. Não me digam, por favor, que o motorista é um louco: chamá-lo de doente só faz com que o isentemos da culpa.

Essa deliberada tentativa de assassinato em massa nos fala muito mais da nossa sociedade do que do comportamento singular desse homem. Ele é culpado? É claro que sim. Deve ser punido? É claro que sim! Mas isso deve nos servir principalmente de aviso. Um alerta-vermelho sobre o quanto nossa sociedade precisa repensar comportamentos e hábitos. Sobre o quanto ainda temos por nos indignar. Sobre o quanto, seguramente, já perdemos tempo...

Citando livremente Chico Buarque, façamos um silêncio tão doente do vizinho reclamar. E que o vizinho venha, conosco, calar fundo, estupefato, sobre essas questões. Mas que esse silêncio nunca signifique resignação. 

Como era possível ler em um cartaz carregado por crianças que integravam a manifestação: "Mais paz, mais amor. Menor motor".