segunda-feira, 4 de abril de 2011

O mais feliz dos acasos

Exatamente um ano atrás, por acaso, fui confundida com outra pessoa em uma conversa virtual. Desse (des)encontro fortuito nasceu uma história ainda um pouco inacreditável. Uma história difícil de traduzir em palavras, por mais que as palavras tenham sido, durante muitos meses, a essência de tudo, o elo que sempre nos uniu.


Entre nós, um oceano e nem sei quantos quilômetros de distância. Mas, também, um mundo de semelhanças inacreditáveis, sincronias surpreendentes e um carinho que de tão enorme parece que sufoca.


Entre vais e vens, dúvidas e impossibilidades, conseguimos enfim construir algo que de tão enorme parece irreal. Algo que de tão profundo, e ao mesmo tempo tão simples e tão verdadeiro, toma nosso cotidiano com planos e sonhos. 


Tenho certeza de que realizaremos cada plano e cada sonho, um de cada vez. 

Estou contigo, e sei que você está em mim.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Algo para calar fundo

Queria poder escrever um texto sem palavras. Um texto de silêncio, que pudesse calar fundo sobre algumas coisas que presenciamos e que temos certeza de que jamais vamos compreender.

Ontem, na noite da capital gaúcha, houve mais uma “bicicletada”: uma manifestação de um grupo de ciclistas ligado ao movimento Massa Crítica, que defende o uso da bicicleta como um meio de transporte mais democrático, ágil e sustentável. Mas, mais do que isso: o pessoal desse movimento questiona estruturas mais profundas da nossa sociedade, simbolizadas no uso agressivo dos meios de transporte (agressivo para o meio-ambiente, mas também agressivo para as pessoas). Dito de outra forma, procuram nos fazer refletir sobre as transformações que ainda ocorrem em ritmo vertiginoso à nossa volta.

Na manifestação, muitos homens e mulheres jovens, várias crianças, todos dispostos a dar algumas voltas de bicicletas pelas ruas da Cidade Baixa, bairro tradicional da capital gaúcha. E eis que um homem, deliberadamente, acelera seu carro sobre o grupo de manifestantes (que talvez fossem duzentas pessoas), atropelando cerca de quinze participantes.
Fonte: Jornal Zero Hora

É nesse momento que prefiro calar fundo. Um silêncio cheio de indignação, mas também cheio de vontade de gritar ao mundo o quanto não podemos nos manter calados. Não falem que foi acidente: ninguém acelera um carro “sem querer” em uma rua que provavelmente já estava com trânsito lento por causa da manifestação. Não me digam que o motorista foi irracional: a irracionalidade não nos permite premeditar a aceleração do automóvel, nem mesmo mirá-lo para um local específico. Não me digam, por favor, que o motorista é um louco: chamá-lo de doente só faz com que o isentemos da culpa.

Essa deliberada tentativa de assassinato em massa nos fala muito mais da nossa sociedade do que do comportamento singular desse homem. Ele é culpado? É claro que sim. Deve ser punido? É claro que sim! Mas isso deve nos servir principalmente de aviso. Um alerta-vermelho sobre o quanto nossa sociedade precisa repensar comportamentos e hábitos. Sobre o quanto ainda temos por nos indignar. Sobre o quanto, seguramente, já perdemos tempo...

Citando livremente Chico Buarque, façamos um silêncio tão doente do vizinho reclamar. E que o vizinho venha, conosco, calar fundo, estupefato, sobre essas questões. Mas que esse silêncio nunca signifique resignação. 

Como era possível ler em um cartaz carregado por crianças que integravam a manifestação: "Mais paz, mais amor. Menor motor".


sábado, 25 de dezembro de 2010

Janelas da infância


Natal. Reunião de família na casa dos avós. Sorrisos, reencontros, comida [sempre muuuita comida]. E, o que sempre esteve ali, na memória, retorna. Retorna com outros sorrisos da infância, com muitas histórias, com as reminiscências que sempre permanecem, mesmo que ocultas. 


Resolvi, então, fotografar as janelas, aquelas que me levavam a outro tempo. Tempo em que existiam menos preocupações, menos compromissos com hora marcada, menos tempo correndo sem rédeas. Tempos em que haviam mais doces, mais proteção. Tempos em que eu estava mais próxima dos que, nesse dia, mais uma vez se reuniram para compartilhar.

Estamos sempre em momentos cruciais, que nos fazem ter medo de seguir, ter medo de começar, ter medo de nos machucarmos novamente, de não conseguir.


Hoje decidi pensar sobre tudo isso olhando pra trás, olhando pro caminho que percorri, tentando imaginar tudo o que vem pela frente. Procurando encaixar as emoções com as expectativas, sigo pensando como fazer tudo isso da melhor forma. Da forma menos dolorida e mais prazerosa. 

Lembranças de infância, expectativas da vida adulta. Sentimentos de um momento crucial, (in)certezas de uma vida inteira. Creio que deva ser sempre assim. Oxalá!




"...Tento voltar ao passado. Vou  sem mapa, vou sem luz. Só a lembrança prá me conduzir. Prá me confundir..." 

(Márcio Faraco & Milton Nascimento, "Cidade Miniatura").

sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre a memória, a vida e as paixões inesquecíveis

Demorei bastante para finalmente me decidir por escrever essa postagem. Falar no “Leite Derramado” de Chico Buarque é, inevitavelmente, comentar sobre a polêmica que está sendo construída em volta da premiação que a obra obteve. Inicio esse texto dessa forma para deixar explícita minha posição: o debate (encabeçado descaradamente pela Veja e o ignóbil Reinaldo de Azevedo) que está tentando criar uma atmosfera política em torno da premiação não passa de mais uma estratégia que a mídia usou em diversos momentos do pleito eleitoral. Com o questionamento das regras do Jabuti, não se está discutindo literatura concretamente, mas política. E mais: política suja. Por essas e por outras, nas próximas linhas, me deterei em traçar algumas pinceladas sobre o livro, as lembranças e as sensações que ele me evocou.




“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas” (p. 41)


“Leite Derramado” é um livro simples, fácil de ler. Acredito que o tenha terminado depois de pegá-lo na mão umas três ou quatro vezes. A narrativa, propositadamente não-linear, faz parte do próprio enredo: um senhor de idade, já enfermo em um hospital, que relembra, em turbilhões, fatos de sua vida. Nascido em uma família aristocrática da era imperial brasileira, seu Eulálio nos leva, nos torvelinhos de sua memória, a muitos lugares. Alguns, são lugares-comuns, lugares que se repetem, que se cravam na memória do personagem – e do seu leitor – e que retornam nas horas mais inoportunas e inesperadas.


“E qualquer coisa que eu recorde agora vai doer, a memória é uma vasta ferida” (p. 10)

Uma das vastas feridas de seu Eulálio é, sem dúvida, a ausência de Matilde, seu grande amor. O que teria realmente acontecido com ela? Buarque deixa o leitor tão confuso quanto seu Eulálio: teria ela, enferma, morrido? Teria abandonado a família? Existiria, realmente, um amante? Mais fortes do que as inúmeras dúvidas são as imagens de Matilde, sempre evocadas, confundidas, amalgamadas com tantas outras lembranças.

“Eu por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem cinema mudo, e os atores já morreram à tempos” (p. 15)

É inevitável não fazer uma relação entre o enredo do “Leite Derramado” e a música “O velho Francisco”, também do Chico (álbum "Francisco", de 1987). Na música, o suposto personagem idoso também relembra fatos de sua vida pregressa, vangloria-se de eventos (improváveis) e, sempre, relembra um grande amor, de quem espera uma eterna visita:


“Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou

Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor

Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou

Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Freqüentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou

Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou

Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né
Acho que o moço até
Nem me lavou

Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou"


Matilde, Matilde e Matilde. Assim como o nome ressoa ao longo de todas as páginas do livro, retorna como uma ladainha às letras desse texto. O velho Eulálio sabe que não conseguirá se libertar de sua lembrança: “Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, porque minha pele tinha ficado presa naquela mulher” (p. 56).

Seu Eulálio sabe que, talvez, não tenha muito tempo e, por isso, trata de contar às enfermeiras (reais ou imaginárias?) tudo o que pode e o que ainda lembra, desfiando os tênues fios que ainda prendem sua memória.


“Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustem pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco” (p. 8)

Não resisti em fazer mais uma relação, dessa vez com o próprio autor. E, nesse caso, penso especificamente na questão do envelhecimento. Seu Eulálio seria, ao menos em parte, o próprio Chico, também sintetizado no velho e cômico seu Francisco, na música de 1987? Chico Buarque, no alto de seus sessenta e seis anos, estaria, também, sentindo o que seu Eulálio confessa sentir, justificando o descaso dos outros?


“Se com a idade a gente dá pra repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar” (p. 96)

“Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida” (p. 184)

E, lá pelas tantas, desabafa:

“As pessoas não se dão ao trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro” (p. 78)


O livro, além disso, contorna em leves traços a história do Brasil: comenta algo do Império, do início da República, do governo Vargas, da Ditadura Civil-Militar, do tráfico de drogas que atualmente assombra os cariocas. Entre os os modos e maneiras das famílias aristocráticas, que viviam no Rio de Janeiro como se estivessem em Paris, Buarque também mostra a decadência que atinge os que presumiam-se blindados dessas agruras.


“Não sei se existe um destino, se alguém o fia, enrola, corta (...). Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa” (p. 55)


Polêmicas á parte, idolatrias também a parte, "Leite Derramado" é uma leitura agradável, rápida, proveitosa. Assim como faz com suas músicas, Chico Buarque consegue combinar leveza, poesia e sofisticação nas linhas desse livro. Vale a leitura. Seu Eulálio parece estar ansioso em compartilhar algumas lembranças!

sábado, 16 de outubro de 2010

Um pequeno tesouro: "A chave de Sarah"

Já fazia algum tempo que não me deleitava com um livro de ficção. Na verdade, em meio a mil e uma leituras, escritas de artigos e preocupações com o mestrado, pouco tempo sobra pra ler algo diferente [entenda-se algo 'mais divertido']. Principalmente fora da tela do computador...

Mas, tive a sorte ser presenteada com um livro, por uma querida tia [uma ávida leitora, é preciso enfatizar]. O assunto, de cara, me mobilizou: segundo ela, a trama falava sobre a ocupação nazista na França, e o colaboracionismo francês durante o Holocausto. De pronto, pensei: ótimo! Um livro sobre o governo de Vichy, sobre um período negro na história de um país que [ainda] coloca-se como um dos 'guardiões da democracia'. Pode vir a ser interessante...

"A chave de Sarah" é o primeiro livro de uma jovem crítica literária francesa chamada Tatiana de Rosnay. Não me deterei em seu estilo literário, mas posso afirmar que é uma obra feita na medida para tornar-se mais um bestseller. Já vendeu alguns milhões ao redor do mundo. Sua leitura é fácil, daquelas que lhe prendem do início ao fim.

Porém, além da trama bem articulada, Rosnay tem o mérito [e a coragem] de tocar num verdadeiro "tema-tabu": centenas de judeus foram deportados por policiais franceses, diretamente para Auschwitz; outros tantos foram mortos e confinados em campos de concentração franceses, sob ordens de políticos franceses. O colaboracionismo francês foi fez muito mais do que seguir as regras vindas do Führer: mais de 4 mil crianças foram assassinadas intencionalmente pelos franceses. Elas não haviam sido "solicitadas" pelos nazistas.

As noites de 16 e 17 de julho de 1942 marcam, com sangue, alguns desses acontecimentos. Deu-se início a uma "operação limpeza": em uma grande batida policial, centenas de famílias foram confinadas no Vélodrome d'Hiver, localizado em Paris [rue Nélaton, XVe arrondissement]. Seus destinos: campos de concentração nos arredores da capital. Após as famílias terem sido separadas, grande parte foi enviada diretamente para Auschwitz-Birkenau. Muitos morreram "no processo", por fome, doenças. As crianças, todas separadas de seus pais, tiveram destino irremediavelmente semelhante.

Os alemães, há décadas, vêm trabalhando sua memória recente. Não sem celeumas, não sem traumas, vêm, aos poucos, estudando e discutindo as implicações e a culpa do Estado alemão num dos mais vergonhosos acontecimentos da história da humanidade.

Em julho de 1994, foi inaugurado um monumento em memória das vítimas da batida policial d'Hiv. Os franceses reconheceram publicamente sua implicação no genocídio. No ano seguinte, em julho, o presidente Jacque Chirac reconheceu a responsabilidade francesa frente aos acontecimentos. Nas suas próprias palavras:

"Ces heures noires souillent à jamais notre histoire, et sont une injure à notre passé et à nos traditions. Oui, la folie criminelle de l'occupant a été secondée par des Français, par l'État français. Il y a cinquante-trois ans, le 16 juillet 1942, 4 500 policiers et gendarmes français, sous l'autorité de leurs chefs, répondaient aux exigences des nazis. Ce jour-là, dans la capitale et en région parisienne, près de dix mille hommes, femmes et enfants juifs furent arrêtés à leur domicile, au petit matin, et rassemblés dans les commissariats de police. (…) La France, patrie des Lumières et des Droits de l'Homme, terre d'accueil et d'asile, la France, ce jour-là, accomplissait l'irréparable. Manquant à sa parole, elle livrait ses protégés à leurs bourreaux"

[..uma livre tradução minha]:

"Estas horas negras mancham sempre a nossa história e são um insulto ao nosso passado e nossas tradições. Sim, a loucura criminosa da ocupação foi ajudada pelos franceses, pelo Estado francês. Há 53 anos, 16 de julho de 1942, 4.500 policiais e gendarmes franceses, sob a autoridade de seus líderes, atenderam às exigências dos nazistas. Naquele dia, na capital e seus arredores, cerca de dez mil homens, mulheres e crianças judaicas foram presos em sua casas no início da manhã e recolhidos em delegacias. A França, pátria do Iluminismo e dos direitos humanos, terra de acolhimento e asilo, a França, nesse dia, realizou o irreparável. Ausente à sua palavra, ela entregou suas acusações a seus algozes"

                         Placa de homenagem às vítimas, situada em frente à estação de metrô Bir Hakeim.

O reconhecimento público da culpabilidade do Estado francês é necessário, sem dúvida nenhuma. Mas, há que se avançar: memória, história e justiça têm de estar em sintonia. Como diz a frase hebraica "Zakhor. Al Tichkah" ("Lembre-se. Nunca esqueça"). É necessário que as novas gerações, francesas ou não, saibam das atrocidades cometidas tão pouco tempo atrás. Como a protagonista do livro comenta em um certo momento, "eu peço desculpas por não saber". A leitura do livro de Rosnay pode, certamente, ser um dos elementos para que essa história não morra com seus poucos sobreviventes, ou com as suas testemunhas.

Zakhor, sempre!

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ROSNAY, Tatiana de. A chave de Sarah. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

"Elle s'appelait Sarah" é o nome da adaptação do livro ao cinema. Estreou nos cinemas franceses no dia 13 de outubro. Aguardo, ansiosamente, que ele chegue por aqui.

sábado, 7 de agosto de 2010

Além do fato: credo do otário (por José Murilo de Carvalho)

Mais um pleito eleitoral se avizinha. Novos deputados, governadores e senadores serão eleitos. Um(a) novo(a) presidente(a) será eleito(a). Pensando nisso, trago algumas provocações de um autor bastante conhecido entre os historiadores que se ocupam do estudo da sociedade brasileira. Seguindo o seu conselho, que tal sermos um pouco mais "otários"?



1. Creio na existência do interesse coletivo, na virtude política e na justiça social. Eu sou otário.

2. Creio que o dinheiro do contribuinte é público e é administrado pelo governo, mas não pertence ao governo. Eu sou otário.

3. Creio no direito dos contribuintes de se recusarem a pagar impostos quando o dinheiro público for objeto de malversação pelo governo. Eu sou otário.

4. Creio que os políticos são delegados dos eleitores e têm que prestar contas de seus atos e dar transparência a suas ações. Eu sou otário.

5. Creio no direito dos eleitores de revogar o mandato de representantes infiéis e corruptos, mesmo na duração do mandato. Eu sou otário.

6. Creio que os funcionários públicos de todos os escalões são servidores dos contribuintes e têm que pautar seu comportamento pelo uso honesto do dinheiro público, pela eficiência e pela civilidade. Eu sou otário.

7. Creio que tanto assalta o patrimônio do cidadão o contribuinte que sonega imposto quanto o Estado que cobra impostos escorchantes. Eu sou otário.

8. Creio que são tão corruptos o político e o funcionário público que cobram propina quanto o empresário que oferece propina em troca de favores. Eu sou otário.

9. Creio que a impunidade é a madrinha da corrupção e que a prisão especial para portadores de diplomas universitários viola o princípio da igualdade perante a lei. Eu sou otário.

10. Creio que é mais corrupto o político que compra voto abusando do poder econômico do que o eleitor que vende voto por necessidade econômica. Eu sou otário.

11. Creio que é menos criminoso o camelô que vende produto contrabandeado para sobreviver do que o empresário que subfatura, sobrefatura, lava dinheiro e sonega imposto para se enriquecer. Eu sou otário.

12. Creio que a República é o regime político que se define pela preocupação com a coisa pública e que o clientelismo, o nepotismo, o patrimonialismo, o mensalão são a corrupção da República. Eu sou otário.

Otários do Brasil, uni-vos!

(Texto publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em 18 de agosto de 2005).

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre a incineração, o descaso e a irresponsabilidade histórica

Em 08 de junho, nosso Senado deu mostras de sua despreocupação com a história de nosso país. Segundo o que diz o artigo nº 967 do Projeto de Lei nº 166, que institui um novo Código de Processo Civil, "os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de cinco anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de um mês".

O que os "interessados" poderão fazer no prazo de um mês, se pensarmos em toda a burocratização do Estado? Apenas ver as cinzas sendo levadas pelo vento.

O segundo parágrafo do mesmo artigo versa que, "se, a juízo da autoridade competente, houver nos autos documentos de valor histórico, serão estes recolhidos ao arquivo público". Quem será a pessoa que avaliará o valor histórico da papelada? Um Juiz? Ou, em outros termos: que documento não tem valor histórico? 

Assim como tudo o que é especificamente humano, o campo historiográfico está em permanente transformação. Refinam-se os métodos, focam-se melhor as lentes, tentam-se outros viéses de análise. Novos objetos e temas são incorporados ao métier do historiador. Mas, é elementar: a história não se faz sem fontes.

Ao ler essa triste notícia, e a mobilização dos historiadores para frear esse crime, não pude deixar de encontrar semelhanças com os percalços do meu trabalho de campo.

Acredito que um dos momentos mais tristes na vida de um historiador ocorre quando ele tem a certeza de que determinadas fontes foram sumariamente eliminadas. Pois então: isso aconteceu com esta que vos tecla, há cerca de três semanas atrás. Ao vasculhar o acervo da instituição (pública, é importante frisar) que representa o cerne de análise da minha dissertação de mestrado, encontro duas singelas "Atas de Registro de Incineração".

Eis a prova empírica do crime:

"Aos doze dias do mês de setembro de mil novecentos e noventa e cinco às 14h25min, na churrasqueira e no pátio da insituição foi realizada incineração dos seguintes documentos: correspondência recebida e expedida de mil novecentos e sessenta e três a mil novecentos e oitenta e nove num total de vinte e sete caixas; fichas razão de mil novecentos e setenta e três a mil novecentos e oitenta num total de oito caixas; movimento de caixa de mil novecentos e oitenta e quatro a mil novecentos e oitenta e seis num total de três caixas; prestação de contas de mil novecentos e setenta e nove a mil novecentos e oitenta e nove num total de 15 caixas; documentos bancários de mil novecentos e setenta e quatro a mil novecentos e oitenta num total de sete caixas; material antigo em duas caixas; relatórios de setores, menos o geral, de mil novecentos e sessenta e quatro a mil novecentos e oitenta e nove, num total de oito caixas (...)".

A ata termina dessa forma, sem nomear responsáveis, sem assinaturas. Sem explicações. Não acredito que o incêndio tenha sido realizado com o objetivo de "queima de arquivo", a fim de esconder evidências ou escamotear ações escusas da instituição.

O provável motivo para a existência dessas "Atas Pirotécnicas" deve ser algo tão relevante quando a falta de espaço. O despreparo dos que trabalham do "arquivo morto" da instituição. O "não saber o que fazer com essa pilha de papéis velhos".

Ou seja: pura irresponsabilidade, falta de consciência histórica, falta de vontade política. Problemas que assolam o Estado brasileiro de ponta à ponta, de cima à baixo, de 500 poucos anos para cá.

Mas, voltando ao fato que inspirou a escrita dessas linhas: quais seriam as conseqüências de uma resolução como essa? Nas palavras de Durval Muniz de Albuquerque, atual presidente da Associação Nacional de História (ANPUH):

"Aprovada a atual proposta, estão novamente em risco milhares de processos cíveis: um prejuízo incalculável para a história do país, que já arca com perdas graves na área da Justiça do Trabalho (...). Além de grave agressão à História, a proposta também fere direitos constitucionais de acesso à informação e de produção de prova jurídica. (...). Não é possível escrever a História sem documentação e esta não pode continuar sendo concebida pelo Estado brasileiro e por nossos representantes no Congresso Nacional como um estorvo, como um lixo para o qual se devem definir mecanismos de destruição periódica. Toda documentação tem valor histórico, todo documento interessa ao historiador, a concepção de que existem documentos que são em si mesmo interessantes para a história e outras não é, há muito tempo, uma visão ultrapassada em nossa área de atuação. Não podemos aceitar que fique a cargo de um juiz, que não tem formação na área de arquivística ou da historiografia, definir se um documento merece ser arquivado ou não, tem valor histórico ou não".

É importante também lembrar que, como também o fez o comunicado oficial da ANPUH, a partir do momento em que nosso Senado aprovar essa lei, restaura-se os postulados do artigo 1.215 do Código de Processo Civil promulgado em 1973, que autorizava essa aniquilação completa de documentos. Naquela vez, após ampla mobilização, houve a suspensão da vigência do artigo (Lei 6.246).

Antes de mais nada, é importante lembrar: 1973. Final do governo do ditador Emílio Garrastazu Médici. Golpe (covarde) de Estado no Chile. Eram tempos sombrios...

Mas, e hoje?

Finalizo este texto com uma dica. Aproveitando os ares democráticos que nos envolvem - ou deveriam nos envolver - sugiro uma olhadinha no abaixo-assinado proposto pela ANPUH. Está em nossas mãos, mais uma vez, conter mais um atentado à memória de nosso país.