sábado, 13 de março de 2010

Como na Argentina (Luis Fernando Veríssimo)

Talvez esse texto já tenha sido bastante divulgado. Talvez, os que convivem comigo já o tenham lido. Porém, em sintonia com os questionamentos que minhas postagens anteriores podem vir a suscitar, é um texto ainda necessário. Triste é indagar por quanto tempo mais teremos de lembrar (e conviver) com esses episódios. O século XXI já nos deu mostras concretas de que "mais do mesmo" está - e vai continuar - acontecendo.

À guisa de explicação:  as palavras que seguem, escritas pelo nosso brilhante Veríssimo foram publicadas no Jornal Zero Hora, em 04 de novembro de 1982. Na época, coisas "estranhas" estavam povoando as águas das costas gaúchas. Corpos que pareciam ter criado guelras disputavam lugar com os peixes e outros pequeninos seres aquáticos. A versão oficial? Um navio, vindo do oriente, havia afundado. E, como já acontece desde o Titanic, algumas pessoas encontraram em  seu destino o afogamento. Ok, desastres acontecem, não é? Uma fatalidade... Porém, dias se passavam, e mais corpos apareciam. Alguns, em lugares bastante distantes do suposto acidente. E, algo incrível: os cadáveres pareciam não ter qualquer característica fenotípica que os assemelhasse aos povos do oriente.

Como isso poderia ter acontecido? As águas gaúchas teriam tal poder de decomposição a ponto de modificar essas marcas corporais? Pois, se estivessemos em um livro do Gabriel Garcia Marquez, talvez sim. Mas o realismo fantástico, infelizmente, só povoa as linhas da Macondo ficcional.

Mas, o que seriam todos esses corpos que apareciam, do nada, em nossas calmas águas? Let's think about it: o ano era 1982. O Brasil, nesse momento, era governado por aquele presidente bonitão, lembra? Aquele que não gostava do cheiro do povo, que preferia morrer à receber um salário mínimo. Aquele dos óculos super "estilosos", esportista, bonachão. Isso, ele mesmo: Generalíssimo Figueiredo. (ironia modo [ON]) Estávamos vivendo ainda sob o jugo dos saudosos militares que, desde 1964, colocaram nossa promissora nação de volta aos trilhos da História, através da Revolução Gloriosa de 1º de abril. (ironia modo [OFF])

Nossos vizinhos fronteiriços, coincidentemente (ou não?), também estavam com seus percalços autoritários. O Uruguai, desde 1973. A Argentina, 1976. E, por aqui, em rítmo de "abertura" lenta, gradual e blábláblá ouvíamos falar dos terrores perpretados em terras hermanas. Aburdos, caros leitores! Verdadeiros absurdos!!!

E eis que alguns lunáticos conspiradores (daqueles que vêem OVNI's no sítio da vovó), insistiam em pensar na hipótese de que esses corpitchos teriam vindo boiando desde lá, até as terras gaudérias. Mas, tchê? Outros, ainda mais desvairadamente insanos, ousavam pensar que os tempos do saudoso Médici (esse, não tão bonachão como o Generalíssimo supracitado) teriam retornado. Seriam esses corpos resultados de sessões de tortura? "Deuslivre"! Não, no Brasil não!

E, assim, surge a crônica que vocês lerão abaixo. Nunca ninguém revelou o que realmente pode ter acontecido nesse episódio. As conjecturas continuam soando apenas como algo passado, que ficou nas páginas amareladas do periódico gaúcho.

Tirem suas próprias conclusões, caros leitores. Mas, lembrem-se: mais cedo ou mais tarde, cobraremos explicações!

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Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como o lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam as mães. Como na Argentina.

Seria fácil se o corpo se extinguisse com a vida. A vida é um nada, acaba-se com a vida com um botão ou com uma agulha. Mas fica o corpo, como um estorvo. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando, sempre há alguém cobrando. As valas comuns não são de confiança. A terra não aceita cadáver sem documentos. Os corpos são devolvidos, mais cedo ou mais tarde. A terra é protocolar, não quer ninguém antes do tempo. A terra não quer ser cúmplice. Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre sobra um pé, ou uma mãe. Sempre há um bisbilhoteiro, sempre há um inconformado. Sempre há um vivo.

Os corpos brotam do chão, como na Argentina. Corpo não é reciclável. Corpo não é reduzível. Dá para dissolver os corpos em ácido, mas não haveria ácido que chegasse para os assassinados do século. Valas mais fundas, mais escombros, nada adianta. Sempre sobra um dedo acusando. O corpo é como o nosso passado, não existe mais e não vai embora. Tentaram largar o corpo no meio do mar e não deu certo. O corpo bóia. O corpo volta. Tentaram forjar o protocolo – foi suicídio, estava fugindo – e o corpo desmentia tudo. O corpo incomoda. O corpo faz muito silêncio. Consciência não é biodegradável. Memórias não apodrecem. Ficam os dentes.

Os meios de acabar com a vida sofisticam-se. Mas ainda não resolveram como acabar com o lixo. Os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais cedo ou mais tarde os mortos brotam da terra.

(Também publicado em: VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe do Freud.  L&PM Editores Ltda: Porto Alegre, 1985)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Desaparecidos (ainda)

 

O Brasil ainda não pagou suas dívidas com o passado. Muitas pessoas que sumiram nas mãos do terror de Estado durante décadas de chumbo da nossa história recente ainda não foram encontradas, sequer sabe-se como foram mortas, ou como "desapareceram com elas". Qualquer pequeno passo no sentido de desvelar os pontos obscuros do hiato 1964-1985 causa um alvoroço desmedido entre as Forças Armadas. Até quando?

Mas, mesmo depois de reestabelecida a democracia (obviamente, esqueçamos que não houve ruptura, que logo depois tivemos o Sarney, o Collor...), muitas pessoas continuam tendo "mortes insepultas". Em nosso tempo de barbárie, a maioria dessas vítimas não pertence à classe média, não participa de movimentos sociais, nem mesmo procura questionar o sistema político e econômico. Não são "subversivos" ou "terroristas" (nem possuem nenhum outro epíteto utilizado para mascarar a racionalização da morte e da tortura). A justificativa para esse destino? Talvez terem marcado na pele e no olhar alguns punhados de séculos de descaso e omissão. São, aos olhos dos outros, seres  "invisíveis".

As Mães de Acarí, assim como as da Plaza de Mayo, clamam ainda hoje por justiça. Por explicações. Quantas outras precisarão trilhar esses mesmos caminhos?  Procurariam elas reparações? Ou buscam por perdão? Porém, “pode-se perdoar quem não confessa seu erro? Quem concede o perdão precisa ter sido ofendido? É possível perdoar a si próprio?” (Paul Ricoeur, "A memória, a história e o esquecimento").

"As vítimas não encontradas somos todos nós
Os que não demos adeus e nem rezamos
Nos cemitérios clandestinos da justiça"

(a qualidade não está muito boa, mas vale a pena dar uma conferida).

O fator Deus (José Saramago)


Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, seqüestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mais limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhãode-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, devíamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como os outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um Deus, mas o “fator Deus” o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, e não a outra...) a bênção divina. E foi no “fator Deus” em que o Deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um Deus andou a semear ventos e que outro Deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres Deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “fator Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

 José Saramago (Folha de São Paulo, 19/09/2001)

quinta-feira, 11 de março de 2010

La memoria

 

"La memoria despierta 
para herir a los pueblos 
dormidos que no la 
dejan vivir libre
como el viento"

(La memoria - Leon Gieco)

Buscando a gênese da exclusão: marcas de uma infância marcada pela miséria

"[...] Aqueles meninos e meninas não brotaram nos campos nem caíram do céu, embora muitos deles vivam num verdadeiro inferno"*

Na próxima segunda-feira, inicio minhas andanças pelo Mestrado em História Social da UFRGS. Muitos desafios estão por vir: desde a mudança de cidade, passando pelas novas exigências teóricas (que, com certeza, serão imensas), culminando com a grande tarefa de escrever um trabalho histórico sobre uma realidade recente e dolorosa de Caxias do Sul. E, o pior: vai ser um trabalho pioneiro, já que nada sobre a história das políticas públicas de correção/contenção/controle/vigilância sobre a infância e a juventude caxienses foi sistematizado até agora.

Falar de infância e juventude sob a tutela do Estado é falar, sem mais rodeios, sobre uma infância e uma juventude destituída de sua cidadania e de seus direitos mais básicos. É falar, também, em séculos de uma política meramente caritativa, com grandes vínculos com a Igreja (sobretudo a católica). E, também, é falar de um período ainda muito doloroso para o nosso país: foi durante a ditadura civil-militar de 1964-1985 que as políticas assistenciais tiveram uma remodelação extremamente autoritária. Quem não lembra da sigla FEBEM? Qual a nossa primeira sensação ao ouvir essas cinco letras juntas?

Como a autora citada acima coloca, a presença das crianças é normal, em qualquer sociedade. A presença do menino de rua, do menor abandonado, do jovem infrator não: ela é socialmente constituída. Ela é fruto da profunda desigualdade histórica, fundada em séculos de exploração e escravidão. Fruto de uma cidadania ainda negada. São o retrato nu, cru e demasiadamente humano de uma concentração de renda absurda.

Caxias do Sul também teve seu "Massacre da Candelária". Também teve seus Esquadrões da Morte, constituídos por pessoas ligadas ao poder público. Também teve "suicídios" de menores em celas da Penitenciária Industrial. Teve muros altos, cercas e privação de liberdade para jovens orfãos e abandonados.

É para poder falar de um pouco de tudo isto que vou me empenhar ao máximo durante os dois próximos anos. A História nunca consegue ser silenciada por muito tempo.

*TEVES, Nilda. Prefácio. In: VARGAS, Angelo L. S. As sementes da marginalidade. Uma análise histórica e bioecológica dos meninos de rua. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. VI

quarta-feira, 10 de março de 2010

Em meio às memórias, revivendo as cirandas da vida

Como é engraçado mexer com fotografias. Elas guardam em si mais do que memórias: guardam caminhos para nos fazer reviver sensações, pensamentos, descobertas. Nos fazem nostálgicos.

Montar o vídeo para a formatura do dia 09 (um daqueles que fazem as mães chorarem, os pais ficarem com os olhos mareados, e as tias solteironas pensarem "essa é a minha sobrinha linda"), foi como me sentir transportada diretamente para 2004, um dos anos mais decisivos da vida dessa singela pessoa que vos escreve. Mas não só da minha: a oportunidade de fazer uma festa junto com algumas das pessoas mais importantes desses seis anos enriquece cada momento despendido com a escolha das fotografias, a edição das imegens, a organização do vídeo.

Nesses momentos a gente percebe o quanto é importante termos por perto pessoas que nos apóiam, incentivam, vibram com nossas vitórias e ajudam a segurar a barra quando as coisas não vão como o esperado.

Abaixo, uma das melodias escolhidas para embalar algumas das imagens que marcaram os tempos mais frutíferos e verdadeiros da minha - e da nossa - trajetória.

Ciranda - Márcio Faraco

Se tento correr o tempo pára
Se páro pra ver o mundo anda
Ele vem bater na minha cara
A vida é sempre essa ciranda

Se a noite me traz uma tristeza
O dia vem cheio de alegria
O que falo agora com certeza
Há pouco não sei se eu diria

Eu quero gritar ninguém me escuta
Está tudo preso na garganta
Às vezes me cansa tanta luta
E é pra não chorar que a gente canta

A gente canta
A gente canta

Eu vi uma luz no fim do túnel
Enchi de esperança o coração
A luz que lá estava foi chegando
Era um trem carregado de ilusão

Andando só na corda bamba
Não temo o futuro da nação
A gente que sempre dançou samba
Enfrenta qualquer divisão

A gente canta
A gente canta

Pedro Juan Gutierrez: um olhar complexo sobre Cuba

Repostando a resenha de 2008 sobre a obra "Trilogia suja de Havana", de Pedro Juan Gutierrez.

Ler a obra de Pedro Juan Gutierrez desavisadamente pode configurar um problema. Desde a capa da edição brasileira da Companhia das Letras, que mostra um homem abordando duas prováveis prostitutas do interior de um carro, até as infindáveis descrições de cenas selvagens de sexo, violência, miséria, sujeira e barbárie podem fazem corar, ou provocar náuseas, no mais impudico dos leitores. Gutierrez descreve nesta obra uma Cuba que entra na década de 1990 desolada, faminta, convivendo irremediavelmente com a miséria total, que degrada homens e mulheres para muito além de seus aspectos físicos e biológicos.

Pedro Juan Gutierrez nasceu em 27 de janeiro de 1950 em Matanzas, Cuba. Segundo alguns, essa cidade era a “Atenas de Cuba”, dado o fato de ali ter se originado ritmos musicais como danzón, a rumba e o guaguancó. Ali se situavam também grandes propriedades açucareiras. Sua maior rival econômica à época era Havana. Ao longo de sua vida, Gutierrez desempenhou diversas funções profissionais: vendedor de sorvete e de jornal, soldado, instrutor de natação e caiaque, cortador de cana-de-açúcar, técnico em construção, dirigente sindical, desenhista técnico, locutor de rádio e, durante 26 anos, jornalista. É pintor, escultor e autor de vários livros de prosa e poesia, sendo que esta obra aqui analisada é a sua primeira aventura com a prosa. Alguns de seus outros livros nesta mesma modalidade: “O Rei de Havana” (1999), “Animal tropical” (2000), “O insaciável homem-aranha” (2002), “Carne de cão” (2003), “Nosso GG em Havana” (2004), “O ninho da serpente: Memórias do filho do sorveteiro” (2005), “Coração mestiço” (2007). Vive atualmente em Havana, dedicando-se exclusivamente à literatura e à pintura.

O fato de Gutierrez, à época da Revolução Cubana (1959), ter tido sua fábrica de sorvetes nacionalizada pelo governo e, em 1966, ter sido recrutado para o serviço militar obrigatório, foram fatos que seguramente influenciaram muito em seu posicionamento político. Nos anos 70 dedicou-se à carreira jornalística, trabalhando em agências de noticias, revistas, rádios e jornais. Durante a década de 80, efetuou inúmeras visitas à União Soviética, à Alemanha Oriental, às favelas brasileiras, à fronteira entre México e Estados Unidos, ainda como jornalista, tendo recebido prêmios nacionais por suas reportagens. Curiosamente, segundo fontes que falam de sua biografia, acabou sua carreira jornalística quando do sucesso do livro “Trilogia suja de Havana” na Espanha, onde foi publicado pela primeira vez , tendo sido demitido sem maiores explicações da empresa cubana à quem prestava serviços...

A obra aqui analisada, dividida em três partes como sugere o seu próprio titulo, foi publicada em 1998 (em diversos paises europeus e latino-americanos – inclusive no Brasil - mas não em Cuba). É dividida temporalmente, sugerindo a época em que o autor registrou os relatos (entre 1990 e 1997). Uma pergunta fica: até que ponto esta obra se configura em uma autobiografia, e onde começa a ficção? É difícil precisar, dada a riqueza de detalhes com que o cotidiano cubano é narrado, as vezes entrecortado por relatos quase jornalísticos, em que pese também a maior parte do livro estar escrita em 1ª pessoa (a pessoa de Pedro Juan Gutierrez).

Não existe uma narrativa linear ao longo do livro, apesar de algumas histórias serem retomadas ao longo dos capítulos. O tom sufocante, escuro e sujo dos episódios narrados no livro nos fazem adentrar na atmosfera de uma Cuba solapada pela crise econômica e miséria perene de sua população. A afirmação que Gutierrez cita ter sido proferida por um amigo, que sentenciava que “...o único jeito de viver aqui é louco, bêbado ou dormindo...” (p. 35) dão o tom da narrativa. Os cortiços imundos, semi-destruidos, com banheiros coletivos usados por muitas pessoas (incontáveis, segundo o autor, pois todo dia há gente nova entrando e saindo...), a falta de água, comida e energia elétrica são o pano de fundo da história. Entre muito sexo, amores, palavrões, drogas e rum, o autor tece uma narrativa vigorosa, que penetra no âmago da vida cubana das ruas, da miscigenação, da falta de liberdade de imprensa, da religiosidade afro-descendente, da prostituição, do contraste entre a natureza caribenha exuberante e a realidade sórdida.

A obra de Gutierrez anda à passos dados com a história de Cuba. Aliás, na contra-mão da história cubana, demonstrando o fim do sonho revolucionário, distante dos heróis idílicos de Sierra Maestra, tão caros aos historiadores. Sobre seu tempo como soldado do exército dos primeiros anos de Fidel Castro, o autor relembra como passou anos imaginando-se superior ao fazer parte daquelas transformações: “(...) Pois bem, passei anos assim. Triunfalmente. Com toda a verdade em uma mão e a bandeira vermelha na outra. (...)” (p. 96).

Ao longo do texto, o autor deixa transparecer como a Revolução ainda povoa o imaginário e o cotidiano cubano, paradoxalmente. Segue uma passagem que pode servir de exemplo:
Através da janela eu via no edifício do lado a mulher velha, grisalha, talvez um pouco abandonada e suja. Sentada numa cadeira de balanço, balançava-se furiosamente e cantava sem pausas e misturando tudo, estrofes da Internacional, do Hino Nacional, da Marcha 26 de Julho, do Hino dos Alfabetizadores, do das milícias, de novo da Internacional, depois repetia tudo. As vezes se calava um pouco, como se quisesse tomar fôlego, e perguntava: ‘Quem é o último? Não tem último nessa fila? Quem é o último para pegar o pão? (...)’. E começava de novo: ‘Não haverá César, nem burguês, nem Deus’ (...) Fazia meia hora que eu estava sentado ali, escutando a louca. Primeiro, me incomodou. Depois parei de ouvir. Tinha me adaptado à paranóia dela (pág 103)
O contexto socioeconômico cubano, narrado por Gutierrez, é o da crise econômica profunda, onde falta tudo: desde matérias-primas até o item mais essencial para a subsistência da população. Cadernetas de abastecimento? Neste momento, não passam de lembranças distantes. Em sua luta pela sobrevivência, Gutierrez conta histórias sobre o comércio clandestino de víveres (que é punido cotidianamente pela policia), o tráfico de drogas, a precariedade dos serviços de saúde, as casas de jogos, a prostituição ligada diretamente ao turismo – tudo se torna subterfúgio à miséria... Em um dos capítulos, narra a sua prisão após ser abordado no malecón demonstrando sua virilidade para uma “ingênua” senhora estrangeira. O cárcere, desumano como em qualquer bom pais capitalista, não se mostra tão diverso a realidade fora das grades.

Sobre a crise econômica que Cuba enfrentou nos anos 90, o autor descreve que:
(...) A crise era violenta e penetrava até o menor cantinho da alma da gente. A fome e a miséria são como um iceberg: a parte mais importante não se vê a olho nu. ‘Mas é preciso ir aos poucos, companheiro, sem perder o controle. Pouco a pouco nos inserimos nesse mundo complexo e na economia de mercado, mas sem abandonar os princípios, etc’ Ah, caralho! Os inesquecíveis anos 90! (...) (p. 115).

(...) Cuba já estava entrando na fome mais séria de sua história. Creio que foi em 1991. Ninguém imaginava toda a crise e toda a fome que viria depois. Nem eu. Só estava preocupado com a minha claustrofobia galopante e com comer, porque naquele mesmo ano, em poucos meses, havia emagrecido dezoito quilos. Evidentemente por falta de comida (p. 32).
Denota-se em diversas passagens o desejo comum de sair de Cuba, rumo às “terras da prosperidade”, como Miami, nos Estados Unidos, ali do outro lado da costa... Muitos são as narrativas sobre tentativas de fugas que acabaram em prisões, ou mesmo em acidentes no mar e ataques de tubarões, etc. A idéia de que Cuba estaria adentrando finalmente ao “mundo capitalista” também perpassa a narrativa, ainda que ao mesmo tempo a “encenação política” tente despistar a miséria. Por isso, resolvi destacar (entre outros trechos da obra) um que sintetiza este sentimento recorrente, como pode ser evidenciado através de uma metáfora utilizada pelo autor:
Saíamos todos das jaulas e começávamos a lutar na selva. Esse era o assunto. Saiamos atrofiados das jaulas. Não tínhamos nem idéia de como era a batalha na selva. Mas era preciso enfrentá-la. Ficamos trinta e cinco anos nas jaulas do zôo. Nos davam alguma comidinha e algum remédio, mas nem idéia de como era o todo o resto além das grades. E de repente era preciso saltar para a selva. Com o cérebro adormecido e os músculos frouxos e débeis. Só os melhores podiam competir pela vida na selva. Eu estava tentando. Fazendo força. Muita força (p. 137).
Esta “batalha na selva” estaria sintetizando o irremediável destino cubano após a desintegração da U.R.S.S. e a queda do Muro de Berlim? A “revolução em um só país” de Fidel Castro finalmente estaria mostrando ares de derrota para seus detratores mais ferozes? Ou seria fruto do bloqueio econômico feroz perpetrado pelos Estados Unidos , como querem fazer crer os fidelistas?

Como citado no comentário de abertura da obra, de José Rubens Siqueira, dentre os personagens do livro, “ninguém acusa o sistema, e ninguém o defende”. É um livro ambíguo. Polêmico. Nauseante. Mas também, indispensável para os que se propõe a estudar a complexa realidade cubana contemporânea, tendo como interlocutor um sujeito como Gutierrez: um “macho tropical”, nascido em Cuba, que participou ativamente dos momentos mais importantes da recente história de seu país, e que nos brinda com suas inquietações, e angustias, para além do que postulam os simples críticos do regime, ou o que vendem os relatos paradisíacos em que crêem os turistas.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Mais um retorno.

E, mais uma vez, retorno à escrever linhas mal traçadas por aqui. Agora, com outros planos e projetos na cabeça. Indo em busca de um sonho, deparando-me com a realidade inexorável que me garante que muita coisa vai mudar - para o bem ou para o mal. Obviamente aposto na primeira alternativa.

Desde a última postagem, muita coisa mudou. Passei a trabalhar com o que eu gosto, com pessoas que eu gosto e que apostam em mim. E isso faz - e efetivamente fez - toda a diferença.

Bem, passo aqui de forma ligeira, para inaugurar o que pode vir a ser um local para contar sobre as novas experiências, os desafios e as loucuras que virão pela frente.

Vibrações muito positivas, sempre!