quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre a incineração, o descaso e a irresponsabilidade histórica

Em 08 de junho, nosso Senado deu mostras de sua despreocupação com a história de nosso país. Segundo o que diz o artigo nº 967 do Projeto de Lei nº 166, que institui um novo Código de Processo Civil, "os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de cinco anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de um mês".

O que os "interessados" poderão fazer no prazo de um mês, se pensarmos em toda a burocratização do Estado? Apenas ver as cinzas sendo levadas pelo vento.

O segundo parágrafo do mesmo artigo versa que, "se, a juízo da autoridade competente, houver nos autos documentos de valor histórico, serão estes recolhidos ao arquivo público". Quem será a pessoa que avaliará o valor histórico da papelada? Um Juiz? Ou, em outros termos: que documento não tem valor histórico? 

Assim como tudo o que é especificamente humano, o campo historiográfico está em permanente transformação. Refinam-se os métodos, focam-se melhor as lentes, tentam-se outros viéses de análise. Novos objetos e temas são incorporados ao métier do historiador. Mas, é elementar: a história não se faz sem fontes.

Ao ler essa triste notícia, e a mobilização dos historiadores para frear esse crime, não pude deixar de encontrar semelhanças com os percalços do meu trabalho de campo.

Acredito que um dos momentos mais tristes na vida de um historiador ocorre quando ele tem a certeza de que determinadas fontes foram sumariamente eliminadas. Pois então: isso aconteceu com esta que vos tecla, há cerca de três semanas atrás. Ao vasculhar o acervo da instituição (pública, é importante frisar) que representa o cerne de análise da minha dissertação de mestrado, encontro duas singelas "Atas de Registro de Incineração".

Eis a prova empírica do crime:

"Aos doze dias do mês de setembro de mil novecentos e noventa e cinco às 14h25min, na churrasqueira e no pátio da insituição foi realizada incineração dos seguintes documentos: correspondência recebida e expedida de mil novecentos e sessenta e três a mil novecentos e oitenta e nove num total de vinte e sete caixas; fichas razão de mil novecentos e setenta e três a mil novecentos e oitenta num total de oito caixas; movimento de caixa de mil novecentos e oitenta e quatro a mil novecentos e oitenta e seis num total de três caixas; prestação de contas de mil novecentos e setenta e nove a mil novecentos e oitenta e nove num total de 15 caixas; documentos bancários de mil novecentos e setenta e quatro a mil novecentos e oitenta num total de sete caixas; material antigo em duas caixas; relatórios de setores, menos o geral, de mil novecentos e sessenta e quatro a mil novecentos e oitenta e nove, num total de oito caixas (...)".

A ata termina dessa forma, sem nomear responsáveis, sem assinaturas. Sem explicações. Não acredito que o incêndio tenha sido realizado com o objetivo de "queima de arquivo", a fim de esconder evidências ou escamotear ações escusas da instituição.

O provável motivo para a existência dessas "Atas Pirotécnicas" deve ser algo tão relevante quando a falta de espaço. O despreparo dos que trabalham do "arquivo morto" da instituição. O "não saber o que fazer com essa pilha de papéis velhos".

Ou seja: pura irresponsabilidade, falta de consciência histórica, falta de vontade política. Problemas que assolam o Estado brasileiro de ponta à ponta, de cima à baixo, de 500 poucos anos para cá.

Mas, voltando ao fato que inspirou a escrita dessas linhas: quais seriam as conseqüências de uma resolução como essa? Nas palavras de Durval Muniz de Albuquerque, atual presidente da Associação Nacional de História (ANPUH):

"Aprovada a atual proposta, estão novamente em risco milhares de processos cíveis: um prejuízo incalculável para a história do país, que já arca com perdas graves na área da Justiça do Trabalho (...). Além de grave agressão à História, a proposta também fere direitos constitucionais de acesso à informação e de produção de prova jurídica. (...). Não é possível escrever a História sem documentação e esta não pode continuar sendo concebida pelo Estado brasileiro e por nossos representantes no Congresso Nacional como um estorvo, como um lixo para o qual se devem definir mecanismos de destruição periódica. Toda documentação tem valor histórico, todo documento interessa ao historiador, a concepção de que existem documentos que são em si mesmo interessantes para a história e outras não é, há muito tempo, uma visão ultrapassada em nossa área de atuação. Não podemos aceitar que fique a cargo de um juiz, que não tem formação na área de arquivística ou da historiografia, definir se um documento merece ser arquivado ou não, tem valor histórico ou não".

É importante também lembrar que, como também o fez o comunicado oficial da ANPUH, a partir do momento em que nosso Senado aprovar essa lei, restaura-se os postulados do artigo 1.215 do Código de Processo Civil promulgado em 1973, que autorizava essa aniquilação completa de documentos. Naquela vez, após ampla mobilização, houve a suspensão da vigência do artigo (Lei 6.246).

Antes de mais nada, é importante lembrar: 1973. Final do governo do ditador Emílio Garrastazu Médici. Golpe (covarde) de Estado no Chile. Eram tempos sombrios...

Mas, e hoje?

Finalizo este texto com uma dica. Aproveitando os ares democráticos que nos envolvem - ou deveriam nos envolver - sugiro uma olhadinha no abaixo-assinado proposto pela ANPUH. Está em nossas mãos, mais uma vez, conter mais um atentado à memória de nosso país.

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