Já fazia algum tempo que não me deleitava com um livro de ficção. Na verdade, em meio a mil e uma leituras, escritas de artigos e preocupações com o mestrado, pouco tempo sobra pra ler algo diferente [entenda-se algo 'mais divertido']. Principalmente fora da tela do computador...
Mas, tive a sorte ser presenteada com um livro, por uma querida tia [uma ávida leitora, é preciso enfatizar]. O assunto, de cara, me mobilizou: segundo ela, a trama falava sobre a ocupação nazista na França, e o colaboracionismo francês durante o Holocausto. De pronto, pensei: ótimo! Um livro sobre o governo de Vichy, sobre um período negro na história de um país que [ainda] coloca-se como um dos 'guardiões da democracia'. Pode vir a ser interessante...
"A chave de Sarah" é o primeiro livro de uma jovem crítica literária francesa chamada Tatiana de Rosnay. Não me deterei em seu estilo literário, mas posso afirmar que é uma obra feita na medida para tornar-se mais um bestseller. Já vendeu alguns milhões ao redor do mundo. Sua leitura é fácil, daquelas que lhe prendem do início ao fim.
Porém, além da trama bem articulada, Rosnay tem o mérito [e a coragem] de tocar num verdadeiro "tema-tabu": centenas de judeus foram deportados por policiais franceses, diretamente para Auschwitz; outros tantos foram mortos e confinados em campos de concentração franceses, sob ordens de políticos franceses. O colaboracionismo francês foi fez muito mais do que seguir as regras vindas do Führer: mais de 4 mil crianças foram assassinadas intencionalmente pelos franceses. Elas não haviam sido "solicitadas" pelos nazistas.
As noites de 16 e 17 de julho de 1942 marcam, com sangue, alguns desses acontecimentos. Deu-se início a uma "operação limpeza": em uma grande batida policial, centenas de famílias foram confinadas no Vélodrome d'Hiver, localizado em Paris [rue Nélaton, XVe arrondissement]. Seus destinos: campos de concentração nos arredores da capital. Após as famílias terem sido separadas, grande parte foi enviada diretamente para Auschwitz-Birkenau. Muitos morreram "no processo", por fome, doenças. As crianças, todas separadas de seus pais, tiveram destino irremediavelmente semelhante.
Os alemães, há décadas, vêm trabalhando sua memória recente. Não sem celeumas, não sem traumas, vêm, aos poucos, estudando e discutindo as implicações e a culpa do Estado alemão num dos mais vergonhosos acontecimentos da história da humanidade.
Em julho de 1994, foi inaugurado um monumento em memória das vítimas da batida policial d'Hiv. Os franceses reconheceram publicamente sua implicação no genocídio. No ano seguinte, em julho, o presidente Jacque Chirac reconheceu a responsabilidade francesa frente aos acontecimentos. Nas suas próprias palavras:
"Ces heures noires souillent à jamais notre histoire, et sont une injure à notre passé et à nos traditions. Oui, la folie criminelle de l'occupant a été secondée par des Français, par l'État français. Il y a cinquante-trois ans, le 16 juillet 1942, 4 500 policiers et gendarmes français, sous l'autorité de leurs chefs, répondaient aux exigences des nazis. Ce jour-là, dans la capitale et en région parisienne, près de dix mille hommes, femmes et enfants juifs furent arrêtés à leur domicile, au petit matin, et rassemblés dans les commissariats de police. (…) La France, patrie des Lumières et des Droits de l'Homme, terre d'accueil et d'asile, la France, ce jour-là, accomplissait l'irréparable. Manquant à sa parole, elle livrait ses protégés à leurs bourreaux"
[..uma livre tradução minha]:
"Estas horas negras mancham sempre a nossa história e são um insulto ao nosso passado e nossas tradições. Sim, a loucura criminosa da ocupação foi ajudada pelos franceses, pelo Estado francês. Há 53 anos, 16 de julho de 1942, 4.500 policiais e gendarmes franceses, sob a autoridade de seus líderes, atenderam às exigências dos nazistas. Naquele dia, na capital e seus arredores, cerca de dez mil homens, mulheres e crianças judaicas foram presos em sua casas no início da manhã e recolhidos em delegacias. A França, pátria do Iluminismo e dos direitos humanos, terra de acolhimento e asilo, a França, nesse dia, realizou o irreparável. Ausente à sua palavra, ela entregou suas acusações a seus algozes"
Placa de homenagem às vítimas, situada em frente à estação de metrô Bir Hakeim.
O reconhecimento público da culpabilidade do Estado francês é necessário, sem dúvida nenhuma. Mas, há que se avançar: memória, história e justiça têm de estar em sintonia. Como diz a frase hebraica "Zakhor. Al Tichkah" ("Lembre-se. Nunca esqueça"). É necessário que as novas gerações, francesas ou não, saibam das atrocidades cometidas tão pouco tempo atrás. Como a protagonista do livro comenta em um certo momento, "eu peço desculpas por não saber". A leitura do livro de Rosnay pode, certamente, ser um dos elementos para que essa história não morra com seus poucos sobreviventes, ou com as suas testemunhas.
Zakhor, sempre!
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ROSNAY, Tatiana de. A chave de Sarah. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
"Elle s'appelait Sarah" é o nome da adaptação do livro ao cinema. Estreou nos cinemas franceses no dia 13 de outubro. Aguardo, ansiosamente, que ele chegue por aqui.
Um comentário:
A vergonha francesa. Também aguardo o filme.
Seu blog é interessante.
Vou ficando por aqui.
Beijos
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