sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre a memória, a vida e as paixões inesquecíveis

Demorei bastante para finalmente me decidir por escrever essa postagem. Falar no “Leite Derramado” de Chico Buarque é, inevitavelmente, comentar sobre a polêmica que está sendo construída em volta da premiação que a obra obteve. Inicio esse texto dessa forma para deixar explícita minha posição: o debate (encabeçado descaradamente pela Veja e o ignóbil Reinaldo de Azevedo) que está tentando criar uma atmosfera política em torno da premiação não passa de mais uma estratégia que a mídia usou em diversos momentos do pleito eleitoral. Com o questionamento das regras do Jabuti, não se está discutindo literatura concretamente, mas política. E mais: política suja. Por essas e por outras, nas próximas linhas, me deterei em traçar algumas pinceladas sobre o livro, as lembranças e as sensações que ele me evocou.




“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas” (p. 41)


“Leite Derramado” é um livro simples, fácil de ler. Acredito que o tenha terminado depois de pegá-lo na mão umas três ou quatro vezes. A narrativa, propositadamente não-linear, faz parte do próprio enredo: um senhor de idade, já enfermo em um hospital, que relembra, em turbilhões, fatos de sua vida. Nascido em uma família aristocrática da era imperial brasileira, seu Eulálio nos leva, nos torvelinhos de sua memória, a muitos lugares. Alguns, são lugares-comuns, lugares que se repetem, que se cravam na memória do personagem – e do seu leitor – e que retornam nas horas mais inoportunas e inesperadas.


“E qualquer coisa que eu recorde agora vai doer, a memória é uma vasta ferida” (p. 10)

Uma das vastas feridas de seu Eulálio é, sem dúvida, a ausência de Matilde, seu grande amor. O que teria realmente acontecido com ela? Buarque deixa o leitor tão confuso quanto seu Eulálio: teria ela, enferma, morrido? Teria abandonado a família? Existiria, realmente, um amante? Mais fortes do que as inúmeras dúvidas são as imagens de Matilde, sempre evocadas, confundidas, amalgamadas com tantas outras lembranças.

“Eu por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem cinema mudo, e os atores já morreram à tempos” (p. 15)

É inevitável não fazer uma relação entre o enredo do “Leite Derramado” e a música “O velho Francisco”, também do Chico (álbum "Francisco", de 1987). Na música, o suposto personagem idoso também relembra fatos de sua vida pregressa, vangloria-se de eventos (improváveis) e, sempre, relembra um grande amor, de quem espera uma eterna visita:


“Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou

Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor

Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou

Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Freqüentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou

Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou

Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né
Acho que o moço até
Nem me lavou

Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou"


Matilde, Matilde e Matilde. Assim como o nome ressoa ao longo de todas as páginas do livro, retorna como uma ladainha às letras desse texto. O velho Eulálio sabe que não conseguirá se libertar de sua lembrança: “Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, porque minha pele tinha ficado presa naquela mulher” (p. 56).

Seu Eulálio sabe que, talvez, não tenha muito tempo e, por isso, trata de contar às enfermeiras (reais ou imaginárias?) tudo o que pode e o que ainda lembra, desfiando os tênues fios que ainda prendem sua memória.


“Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustem pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco” (p. 8)

Não resisti em fazer mais uma relação, dessa vez com o próprio autor. E, nesse caso, penso especificamente na questão do envelhecimento. Seu Eulálio seria, ao menos em parte, o próprio Chico, também sintetizado no velho e cômico seu Francisco, na música de 1987? Chico Buarque, no alto de seus sessenta e seis anos, estaria, também, sentindo o que seu Eulálio confessa sentir, justificando o descaso dos outros?


“Se com a idade a gente dá pra repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar” (p. 96)

“Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida” (p. 184)

E, lá pelas tantas, desabafa:

“As pessoas não se dão ao trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro” (p. 78)


O livro, além disso, contorna em leves traços a história do Brasil: comenta algo do Império, do início da República, do governo Vargas, da Ditadura Civil-Militar, do tráfico de drogas que atualmente assombra os cariocas. Entre os os modos e maneiras das famílias aristocráticas, que viviam no Rio de Janeiro como se estivessem em Paris, Buarque também mostra a decadência que atinge os que presumiam-se blindados dessas agruras.


“Não sei se existe um destino, se alguém o fia, enrola, corta (...). Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa” (p. 55)


Polêmicas á parte, idolatrias também a parte, "Leite Derramado" é uma leitura agradável, rápida, proveitosa. Assim como faz com suas músicas, Chico Buarque consegue combinar leveza, poesia e sofisticação nas linhas desse livro. Vale a leitura. Seu Eulálio parece estar ansioso em compartilhar algumas lembranças!

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