sábado, 13 de março de 2010

Como na Argentina (Luis Fernando Veríssimo)

Talvez esse texto já tenha sido bastante divulgado. Talvez, os que convivem comigo já o tenham lido. Porém, em sintonia com os questionamentos que minhas postagens anteriores podem vir a suscitar, é um texto ainda necessário. Triste é indagar por quanto tempo mais teremos de lembrar (e conviver) com esses episódios. O século XXI já nos deu mostras concretas de que "mais do mesmo" está - e vai continuar - acontecendo.

À guisa de explicação:  as palavras que seguem, escritas pelo nosso brilhante Veríssimo foram publicadas no Jornal Zero Hora, em 04 de novembro de 1982. Na época, coisas "estranhas" estavam povoando as águas das costas gaúchas. Corpos que pareciam ter criado guelras disputavam lugar com os peixes e outros pequeninos seres aquáticos. A versão oficial? Um navio, vindo do oriente, havia afundado. E, como já acontece desde o Titanic, algumas pessoas encontraram em  seu destino o afogamento. Ok, desastres acontecem, não é? Uma fatalidade... Porém, dias se passavam, e mais corpos apareciam. Alguns, em lugares bastante distantes do suposto acidente. E, algo incrível: os cadáveres pareciam não ter qualquer característica fenotípica que os assemelhasse aos povos do oriente.

Como isso poderia ter acontecido? As águas gaúchas teriam tal poder de decomposição a ponto de modificar essas marcas corporais? Pois, se estivessemos em um livro do Gabriel Garcia Marquez, talvez sim. Mas o realismo fantástico, infelizmente, só povoa as linhas da Macondo ficcional.

Mas, o que seriam todos esses corpos que apareciam, do nada, em nossas calmas águas? Let's think about it: o ano era 1982. O Brasil, nesse momento, era governado por aquele presidente bonitão, lembra? Aquele que não gostava do cheiro do povo, que preferia morrer à receber um salário mínimo. Aquele dos óculos super "estilosos", esportista, bonachão. Isso, ele mesmo: Generalíssimo Figueiredo. (ironia modo [ON]) Estávamos vivendo ainda sob o jugo dos saudosos militares que, desde 1964, colocaram nossa promissora nação de volta aos trilhos da História, através da Revolução Gloriosa de 1º de abril. (ironia modo [OFF])

Nossos vizinhos fronteiriços, coincidentemente (ou não?), também estavam com seus percalços autoritários. O Uruguai, desde 1973. A Argentina, 1976. E, por aqui, em rítmo de "abertura" lenta, gradual e blábláblá ouvíamos falar dos terrores perpretados em terras hermanas. Aburdos, caros leitores! Verdadeiros absurdos!!!

E eis que alguns lunáticos conspiradores (daqueles que vêem OVNI's no sítio da vovó), insistiam em pensar na hipótese de que esses corpitchos teriam vindo boiando desde lá, até as terras gaudérias. Mas, tchê? Outros, ainda mais desvairadamente insanos, ousavam pensar que os tempos do saudoso Médici (esse, não tão bonachão como o Generalíssimo supracitado) teriam retornado. Seriam esses corpos resultados de sessões de tortura? "Deuslivre"! Não, no Brasil não!

E, assim, surge a crônica que vocês lerão abaixo. Nunca ninguém revelou o que realmente pode ter acontecido nesse episódio. As conjecturas continuam soando apenas como algo passado, que ficou nas páginas amareladas do periódico gaúcho.

Tirem suas próprias conclusões, caros leitores. Mas, lembrem-se: mais cedo ou mais tarde, cobraremos explicações!

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Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como o lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam as mães. Como na Argentina.

Seria fácil se o corpo se extinguisse com a vida. A vida é um nada, acaba-se com a vida com um botão ou com uma agulha. Mas fica o corpo, como um estorvo. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando, sempre há alguém cobrando. As valas comuns não são de confiança. A terra não aceita cadáver sem documentos. Os corpos são devolvidos, mais cedo ou mais tarde. A terra é protocolar, não quer ninguém antes do tempo. A terra não quer ser cúmplice. Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre sobra um pé, ou uma mãe. Sempre há um bisbilhoteiro, sempre há um inconformado. Sempre há um vivo.

Os corpos brotam do chão, como na Argentina. Corpo não é reciclável. Corpo não é reduzível. Dá para dissolver os corpos em ácido, mas não haveria ácido que chegasse para os assassinados do século. Valas mais fundas, mais escombros, nada adianta. Sempre sobra um dedo acusando. O corpo é como o nosso passado, não existe mais e não vai embora. Tentaram largar o corpo no meio do mar e não deu certo. O corpo bóia. O corpo volta. Tentaram forjar o protocolo – foi suicídio, estava fugindo – e o corpo desmentia tudo. O corpo incomoda. O corpo faz muito silêncio. Consciência não é biodegradável. Memórias não apodrecem. Ficam os dentes.

Os meios de acabar com a vida sofisticam-se. Mas ainda não resolveram como acabar com o lixo. Os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais cedo ou mais tarde os mortos brotam da terra.

(Também publicado em: VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe do Freud.  L&PM Editores Ltda: Porto Alegre, 1985)

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