quarta-feira, 10 de março de 2010

Pedro Juan Gutierrez: um olhar complexo sobre Cuba

Repostando a resenha de 2008 sobre a obra "Trilogia suja de Havana", de Pedro Juan Gutierrez.

Ler a obra de Pedro Juan Gutierrez desavisadamente pode configurar um problema. Desde a capa da edição brasileira da Companhia das Letras, que mostra um homem abordando duas prováveis prostitutas do interior de um carro, até as infindáveis descrições de cenas selvagens de sexo, violência, miséria, sujeira e barbárie podem fazem corar, ou provocar náuseas, no mais impudico dos leitores. Gutierrez descreve nesta obra uma Cuba que entra na década de 1990 desolada, faminta, convivendo irremediavelmente com a miséria total, que degrada homens e mulheres para muito além de seus aspectos físicos e biológicos.

Pedro Juan Gutierrez nasceu em 27 de janeiro de 1950 em Matanzas, Cuba. Segundo alguns, essa cidade era a “Atenas de Cuba”, dado o fato de ali ter se originado ritmos musicais como danzón, a rumba e o guaguancó. Ali se situavam também grandes propriedades açucareiras. Sua maior rival econômica à época era Havana. Ao longo de sua vida, Gutierrez desempenhou diversas funções profissionais: vendedor de sorvete e de jornal, soldado, instrutor de natação e caiaque, cortador de cana-de-açúcar, técnico em construção, dirigente sindical, desenhista técnico, locutor de rádio e, durante 26 anos, jornalista. É pintor, escultor e autor de vários livros de prosa e poesia, sendo que esta obra aqui analisada é a sua primeira aventura com a prosa. Alguns de seus outros livros nesta mesma modalidade: “O Rei de Havana” (1999), “Animal tropical” (2000), “O insaciável homem-aranha” (2002), “Carne de cão” (2003), “Nosso GG em Havana” (2004), “O ninho da serpente: Memórias do filho do sorveteiro” (2005), “Coração mestiço” (2007). Vive atualmente em Havana, dedicando-se exclusivamente à literatura e à pintura.

O fato de Gutierrez, à época da Revolução Cubana (1959), ter tido sua fábrica de sorvetes nacionalizada pelo governo e, em 1966, ter sido recrutado para o serviço militar obrigatório, foram fatos que seguramente influenciaram muito em seu posicionamento político. Nos anos 70 dedicou-se à carreira jornalística, trabalhando em agências de noticias, revistas, rádios e jornais. Durante a década de 80, efetuou inúmeras visitas à União Soviética, à Alemanha Oriental, às favelas brasileiras, à fronteira entre México e Estados Unidos, ainda como jornalista, tendo recebido prêmios nacionais por suas reportagens. Curiosamente, segundo fontes que falam de sua biografia, acabou sua carreira jornalística quando do sucesso do livro “Trilogia suja de Havana” na Espanha, onde foi publicado pela primeira vez , tendo sido demitido sem maiores explicações da empresa cubana à quem prestava serviços...

A obra aqui analisada, dividida em três partes como sugere o seu próprio titulo, foi publicada em 1998 (em diversos paises europeus e latino-americanos – inclusive no Brasil - mas não em Cuba). É dividida temporalmente, sugerindo a época em que o autor registrou os relatos (entre 1990 e 1997). Uma pergunta fica: até que ponto esta obra se configura em uma autobiografia, e onde começa a ficção? É difícil precisar, dada a riqueza de detalhes com que o cotidiano cubano é narrado, as vezes entrecortado por relatos quase jornalísticos, em que pese também a maior parte do livro estar escrita em 1ª pessoa (a pessoa de Pedro Juan Gutierrez).

Não existe uma narrativa linear ao longo do livro, apesar de algumas histórias serem retomadas ao longo dos capítulos. O tom sufocante, escuro e sujo dos episódios narrados no livro nos fazem adentrar na atmosfera de uma Cuba solapada pela crise econômica e miséria perene de sua população. A afirmação que Gutierrez cita ter sido proferida por um amigo, que sentenciava que “...o único jeito de viver aqui é louco, bêbado ou dormindo...” (p. 35) dão o tom da narrativa. Os cortiços imundos, semi-destruidos, com banheiros coletivos usados por muitas pessoas (incontáveis, segundo o autor, pois todo dia há gente nova entrando e saindo...), a falta de água, comida e energia elétrica são o pano de fundo da história. Entre muito sexo, amores, palavrões, drogas e rum, o autor tece uma narrativa vigorosa, que penetra no âmago da vida cubana das ruas, da miscigenação, da falta de liberdade de imprensa, da religiosidade afro-descendente, da prostituição, do contraste entre a natureza caribenha exuberante e a realidade sórdida.

A obra de Gutierrez anda à passos dados com a história de Cuba. Aliás, na contra-mão da história cubana, demonstrando o fim do sonho revolucionário, distante dos heróis idílicos de Sierra Maestra, tão caros aos historiadores. Sobre seu tempo como soldado do exército dos primeiros anos de Fidel Castro, o autor relembra como passou anos imaginando-se superior ao fazer parte daquelas transformações: “(...) Pois bem, passei anos assim. Triunfalmente. Com toda a verdade em uma mão e a bandeira vermelha na outra. (...)” (p. 96).

Ao longo do texto, o autor deixa transparecer como a Revolução ainda povoa o imaginário e o cotidiano cubano, paradoxalmente. Segue uma passagem que pode servir de exemplo:
Através da janela eu via no edifício do lado a mulher velha, grisalha, talvez um pouco abandonada e suja. Sentada numa cadeira de balanço, balançava-se furiosamente e cantava sem pausas e misturando tudo, estrofes da Internacional, do Hino Nacional, da Marcha 26 de Julho, do Hino dos Alfabetizadores, do das milícias, de novo da Internacional, depois repetia tudo. As vezes se calava um pouco, como se quisesse tomar fôlego, e perguntava: ‘Quem é o último? Não tem último nessa fila? Quem é o último para pegar o pão? (...)’. E começava de novo: ‘Não haverá César, nem burguês, nem Deus’ (...) Fazia meia hora que eu estava sentado ali, escutando a louca. Primeiro, me incomodou. Depois parei de ouvir. Tinha me adaptado à paranóia dela (pág 103)
O contexto socioeconômico cubano, narrado por Gutierrez, é o da crise econômica profunda, onde falta tudo: desde matérias-primas até o item mais essencial para a subsistência da população. Cadernetas de abastecimento? Neste momento, não passam de lembranças distantes. Em sua luta pela sobrevivência, Gutierrez conta histórias sobre o comércio clandestino de víveres (que é punido cotidianamente pela policia), o tráfico de drogas, a precariedade dos serviços de saúde, as casas de jogos, a prostituição ligada diretamente ao turismo – tudo se torna subterfúgio à miséria... Em um dos capítulos, narra a sua prisão após ser abordado no malecón demonstrando sua virilidade para uma “ingênua” senhora estrangeira. O cárcere, desumano como em qualquer bom pais capitalista, não se mostra tão diverso a realidade fora das grades.

Sobre a crise econômica que Cuba enfrentou nos anos 90, o autor descreve que:
(...) A crise era violenta e penetrava até o menor cantinho da alma da gente. A fome e a miséria são como um iceberg: a parte mais importante não se vê a olho nu. ‘Mas é preciso ir aos poucos, companheiro, sem perder o controle. Pouco a pouco nos inserimos nesse mundo complexo e na economia de mercado, mas sem abandonar os princípios, etc’ Ah, caralho! Os inesquecíveis anos 90! (...) (p. 115).

(...) Cuba já estava entrando na fome mais séria de sua história. Creio que foi em 1991. Ninguém imaginava toda a crise e toda a fome que viria depois. Nem eu. Só estava preocupado com a minha claustrofobia galopante e com comer, porque naquele mesmo ano, em poucos meses, havia emagrecido dezoito quilos. Evidentemente por falta de comida (p. 32).
Denota-se em diversas passagens o desejo comum de sair de Cuba, rumo às “terras da prosperidade”, como Miami, nos Estados Unidos, ali do outro lado da costa... Muitos são as narrativas sobre tentativas de fugas que acabaram em prisões, ou mesmo em acidentes no mar e ataques de tubarões, etc. A idéia de que Cuba estaria adentrando finalmente ao “mundo capitalista” também perpassa a narrativa, ainda que ao mesmo tempo a “encenação política” tente despistar a miséria. Por isso, resolvi destacar (entre outros trechos da obra) um que sintetiza este sentimento recorrente, como pode ser evidenciado através de uma metáfora utilizada pelo autor:
Saíamos todos das jaulas e começávamos a lutar na selva. Esse era o assunto. Saiamos atrofiados das jaulas. Não tínhamos nem idéia de como era a batalha na selva. Mas era preciso enfrentá-la. Ficamos trinta e cinco anos nas jaulas do zôo. Nos davam alguma comidinha e algum remédio, mas nem idéia de como era o todo o resto além das grades. E de repente era preciso saltar para a selva. Com o cérebro adormecido e os músculos frouxos e débeis. Só os melhores podiam competir pela vida na selva. Eu estava tentando. Fazendo força. Muita força (p. 137).
Esta “batalha na selva” estaria sintetizando o irremediável destino cubano após a desintegração da U.R.S.S. e a queda do Muro de Berlim? A “revolução em um só país” de Fidel Castro finalmente estaria mostrando ares de derrota para seus detratores mais ferozes? Ou seria fruto do bloqueio econômico feroz perpetrado pelos Estados Unidos , como querem fazer crer os fidelistas?

Como citado no comentário de abertura da obra, de José Rubens Siqueira, dentre os personagens do livro, “ninguém acusa o sistema, e ninguém o defende”. É um livro ambíguo. Polêmico. Nauseante. Mas também, indispensável para os que se propõe a estudar a complexa realidade cubana contemporânea, tendo como interlocutor um sujeito como Gutierrez: um “macho tropical”, nascido em Cuba, que participou ativamente dos momentos mais importantes da recente história de seu país, e que nos brinda com suas inquietações, e angustias, para além do que postulam os simples críticos do regime, ou o que vendem os relatos paradisíacos em que crêem os turistas.

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