sábado, 25 de dezembro de 2010

Janelas da infância


Natal. Reunião de família na casa dos avós. Sorrisos, reencontros, comida [sempre muuuita comida]. E, o que sempre esteve ali, na memória, retorna. Retorna com outros sorrisos da infância, com muitas histórias, com as reminiscências que sempre permanecem, mesmo que ocultas. 


Resolvi, então, fotografar as janelas, aquelas que me levavam a outro tempo. Tempo em que existiam menos preocupações, menos compromissos com hora marcada, menos tempo correndo sem rédeas. Tempos em que haviam mais doces, mais proteção. Tempos em que eu estava mais próxima dos que, nesse dia, mais uma vez se reuniram para compartilhar.

Estamos sempre em momentos cruciais, que nos fazem ter medo de seguir, ter medo de começar, ter medo de nos machucarmos novamente, de não conseguir.


Hoje decidi pensar sobre tudo isso olhando pra trás, olhando pro caminho que percorri, tentando imaginar tudo o que vem pela frente. Procurando encaixar as emoções com as expectativas, sigo pensando como fazer tudo isso da melhor forma. Da forma menos dolorida e mais prazerosa. 

Lembranças de infância, expectativas da vida adulta. Sentimentos de um momento crucial, (in)certezas de uma vida inteira. Creio que deva ser sempre assim. Oxalá!




"...Tento voltar ao passado. Vou  sem mapa, vou sem luz. Só a lembrança prá me conduzir. Prá me confundir..." 

(Márcio Faraco & Milton Nascimento, "Cidade Miniatura").

sábado, 27 de novembro de 2010

Sobre a memória, a vida e as paixões inesquecíveis

Demorei bastante para finalmente me decidir por escrever essa postagem. Falar no “Leite Derramado” de Chico Buarque é, inevitavelmente, comentar sobre a polêmica que está sendo construída em volta da premiação que a obra obteve. Inicio esse texto dessa forma para deixar explícita minha posição: o debate (encabeçado descaradamente pela Veja e o ignóbil Reinaldo de Azevedo) que está tentando criar uma atmosfera política em torno da premiação não passa de mais uma estratégia que a mídia usou em diversos momentos do pleito eleitoral. Com o questionamento das regras do Jabuti, não se está discutindo literatura concretamente, mas política. E mais: política suja. Por essas e por outras, nas próximas linhas, me deterei em traçar algumas pinceladas sobre o livro, as lembranças e as sensações que ele me evocou.




“A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas” (p. 41)


“Leite Derramado” é um livro simples, fácil de ler. Acredito que o tenha terminado depois de pegá-lo na mão umas três ou quatro vezes. A narrativa, propositadamente não-linear, faz parte do próprio enredo: um senhor de idade, já enfermo em um hospital, que relembra, em turbilhões, fatos de sua vida. Nascido em uma família aristocrática da era imperial brasileira, seu Eulálio nos leva, nos torvelinhos de sua memória, a muitos lugares. Alguns, são lugares-comuns, lugares que se repetem, que se cravam na memória do personagem – e do seu leitor – e que retornam nas horas mais inoportunas e inesperadas.


“E qualquer coisa que eu recorde agora vai doer, a memória é uma vasta ferida” (p. 10)

Uma das vastas feridas de seu Eulálio é, sem dúvida, a ausência de Matilde, seu grande amor. O que teria realmente acontecido com ela? Buarque deixa o leitor tão confuso quanto seu Eulálio: teria ela, enferma, morrido? Teria abandonado a família? Existiria, realmente, um amante? Mais fortes do que as inúmeras dúvidas são as imagens de Matilde, sempre evocadas, confundidas, amalgamadas com tantas outras lembranças.

“Eu por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem cinema mudo, e os atores já morreram à tempos” (p. 15)

É inevitável não fazer uma relação entre o enredo do “Leite Derramado” e a música “O velho Francisco”, também do Chico (álbum "Francisco", de 1987). Na música, o suposto personagem idoso também relembra fatos de sua vida pregressa, vangloria-se de eventos (improváveis) e, sempre, relembra um grande amor, de quem espera uma eterna visita:


“Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou

Fui eu mesmo alforriado
Pela mão do Imperador
Tive terra, arado
Cavalo e brida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Ela vem toda de brinco
Vem todo domingo
Tem cheiro de flor

Quem me vê, vê nem bagaço
Do que viu quem me enfrentou
Campeão do mundo
Em queda de braço
Vida veio e me levou

Li jornal, bula e prefácio
Que aprendi sem professor
Freqüentei palácio
Sem fazer feio
Vida veio e me levou

Eu gerei dezoito filhas
Me tornei navegador
Vice-rei das ilhas
Da Caraíba
Vida veio e me levou

Fechei negócio da China
Desbravei o interior
Possuí mina
De prata, jazida
Vida veio e me levou

Hoje é dia de visita
Vem aí meu grande amor
Hoje não deram almoço, né
Acho que o moço até
Nem me lavou

Acho que fui deputado
Acho que tudo acabou
Quase que
Já não me lembro de nada
Vida veio e me levou"


Matilde, Matilde e Matilde. Assim como o nome ressoa ao longo de todas as páginas do livro, retorna como uma ladainha às letras desse texto. O velho Eulálio sabe que não conseguirá se libertar de sua lembrança: “Era como se a cada passo eu me rasgasse um pouco, porque minha pele tinha ficado presa naquela mulher” (p. 56).

Seu Eulálio sabe que, talvez, não tenha muito tempo e, por isso, trata de contar às enfermeiras (reais ou imaginárias?) tudo o que pode e o que ainda lembra, desfiando os tênues fios que ainda prendem sua memória.


“Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustem pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco” (p. 8)

Não resisti em fazer mais uma relação, dessa vez com o próprio autor. E, nesse caso, penso especificamente na questão do envelhecimento. Seu Eulálio seria, ao menos em parte, o próprio Chico, também sintetizado no velho e cômico seu Francisco, na música de 1987? Chico Buarque, no alto de seus sessenta e seis anos, estaria, também, sentindo o que seu Eulálio confessa sentir, justificando o descaso dos outros?


“Se com a idade a gente dá pra repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar” (p. 96)

“Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida” (p. 184)

E, lá pelas tantas, desabafa:

“As pessoas não se dão ao trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro” (p. 78)


O livro, além disso, contorna em leves traços a história do Brasil: comenta algo do Império, do início da República, do governo Vargas, da Ditadura Civil-Militar, do tráfico de drogas que atualmente assombra os cariocas. Entre os os modos e maneiras das famílias aristocráticas, que viviam no Rio de Janeiro como se estivessem em Paris, Buarque também mostra a decadência que atinge os que presumiam-se blindados dessas agruras.


“Não sei se existe um destino, se alguém o fia, enrola, corta (...). Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa” (p. 55)


Polêmicas á parte, idolatrias também a parte, "Leite Derramado" é uma leitura agradável, rápida, proveitosa. Assim como faz com suas músicas, Chico Buarque consegue combinar leveza, poesia e sofisticação nas linhas desse livro. Vale a leitura. Seu Eulálio parece estar ansioso em compartilhar algumas lembranças!

sábado, 16 de outubro de 2010

Um pequeno tesouro: "A chave de Sarah"

Já fazia algum tempo que não me deleitava com um livro de ficção. Na verdade, em meio a mil e uma leituras, escritas de artigos e preocupações com o mestrado, pouco tempo sobra pra ler algo diferente [entenda-se algo 'mais divertido']. Principalmente fora da tela do computador...

Mas, tive a sorte ser presenteada com um livro, por uma querida tia [uma ávida leitora, é preciso enfatizar]. O assunto, de cara, me mobilizou: segundo ela, a trama falava sobre a ocupação nazista na França, e o colaboracionismo francês durante o Holocausto. De pronto, pensei: ótimo! Um livro sobre o governo de Vichy, sobre um período negro na história de um país que [ainda] coloca-se como um dos 'guardiões da democracia'. Pode vir a ser interessante...

"A chave de Sarah" é o primeiro livro de uma jovem crítica literária francesa chamada Tatiana de Rosnay. Não me deterei em seu estilo literário, mas posso afirmar que é uma obra feita na medida para tornar-se mais um bestseller. Já vendeu alguns milhões ao redor do mundo. Sua leitura é fácil, daquelas que lhe prendem do início ao fim.

Porém, além da trama bem articulada, Rosnay tem o mérito [e a coragem] de tocar num verdadeiro "tema-tabu": centenas de judeus foram deportados por policiais franceses, diretamente para Auschwitz; outros tantos foram mortos e confinados em campos de concentração franceses, sob ordens de políticos franceses. O colaboracionismo francês foi fez muito mais do que seguir as regras vindas do Führer: mais de 4 mil crianças foram assassinadas intencionalmente pelos franceses. Elas não haviam sido "solicitadas" pelos nazistas.

As noites de 16 e 17 de julho de 1942 marcam, com sangue, alguns desses acontecimentos. Deu-se início a uma "operação limpeza": em uma grande batida policial, centenas de famílias foram confinadas no Vélodrome d'Hiver, localizado em Paris [rue Nélaton, XVe arrondissement]. Seus destinos: campos de concentração nos arredores da capital. Após as famílias terem sido separadas, grande parte foi enviada diretamente para Auschwitz-Birkenau. Muitos morreram "no processo", por fome, doenças. As crianças, todas separadas de seus pais, tiveram destino irremediavelmente semelhante.

Os alemães, há décadas, vêm trabalhando sua memória recente. Não sem celeumas, não sem traumas, vêm, aos poucos, estudando e discutindo as implicações e a culpa do Estado alemão num dos mais vergonhosos acontecimentos da história da humanidade.

Em julho de 1994, foi inaugurado um monumento em memória das vítimas da batida policial d'Hiv. Os franceses reconheceram publicamente sua implicação no genocídio. No ano seguinte, em julho, o presidente Jacque Chirac reconheceu a responsabilidade francesa frente aos acontecimentos. Nas suas próprias palavras:

"Ces heures noires souillent à jamais notre histoire, et sont une injure à notre passé et à nos traditions. Oui, la folie criminelle de l'occupant a été secondée par des Français, par l'État français. Il y a cinquante-trois ans, le 16 juillet 1942, 4 500 policiers et gendarmes français, sous l'autorité de leurs chefs, répondaient aux exigences des nazis. Ce jour-là, dans la capitale et en région parisienne, près de dix mille hommes, femmes et enfants juifs furent arrêtés à leur domicile, au petit matin, et rassemblés dans les commissariats de police. (…) La France, patrie des Lumières et des Droits de l'Homme, terre d'accueil et d'asile, la France, ce jour-là, accomplissait l'irréparable. Manquant à sa parole, elle livrait ses protégés à leurs bourreaux"

[..uma livre tradução minha]:

"Estas horas negras mancham sempre a nossa história e são um insulto ao nosso passado e nossas tradições. Sim, a loucura criminosa da ocupação foi ajudada pelos franceses, pelo Estado francês. Há 53 anos, 16 de julho de 1942, 4.500 policiais e gendarmes franceses, sob a autoridade de seus líderes, atenderam às exigências dos nazistas. Naquele dia, na capital e seus arredores, cerca de dez mil homens, mulheres e crianças judaicas foram presos em sua casas no início da manhã e recolhidos em delegacias. A França, pátria do Iluminismo e dos direitos humanos, terra de acolhimento e asilo, a França, nesse dia, realizou o irreparável. Ausente à sua palavra, ela entregou suas acusações a seus algozes"

                         Placa de homenagem às vítimas, situada em frente à estação de metrô Bir Hakeim.

O reconhecimento público da culpabilidade do Estado francês é necessário, sem dúvida nenhuma. Mas, há que se avançar: memória, história e justiça têm de estar em sintonia. Como diz a frase hebraica "Zakhor. Al Tichkah" ("Lembre-se. Nunca esqueça"). É necessário que as novas gerações, francesas ou não, saibam das atrocidades cometidas tão pouco tempo atrás. Como a protagonista do livro comenta em um certo momento, "eu peço desculpas por não saber". A leitura do livro de Rosnay pode, certamente, ser um dos elementos para que essa história não morra com seus poucos sobreviventes, ou com as suas testemunhas.

Zakhor, sempre!

----------
ROSNAY, Tatiana de. A chave de Sarah. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

"Elle s'appelait Sarah" é o nome da adaptação do livro ao cinema. Estreou nos cinemas franceses no dia 13 de outubro. Aguardo, ansiosamente, que ele chegue por aqui.

sábado, 7 de agosto de 2010

Além do fato: credo do otário (por José Murilo de Carvalho)

Mais um pleito eleitoral se avizinha. Novos deputados, governadores e senadores serão eleitos. Um(a) novo(a) presidente(a) será eleito(a). Pensando nisso, trago algumas provocações de um autor bastante conhecido entre os historiadores que se ocupam do estudo da sociedade brasileira. Seguindo o seu conselho, que tal sermos um pouco mais "otários"?



1. Creio na existência do interesse coletivo, na virtude política e na justiça social. Eu sou otário.

2. Creio que o dinheiro do contribuinte é público e é administrado pelo governo, mas não pertence ao governo. Eu sou otário.

3. Creio no direito dos contribuintes de se recusarem a pagar impostos quando o dinheiro público for objeto de malversação pelo governo. Eu sou otário.

4. Creio que os políticos são delegados dos eleitores e têm que prestar contas de seus atos e dar transparência a suas ações. Eu sou otário.

5. Creio no direito dos eleitores de revogar o mandato de representantes infiéis e corruptos, mesmo na duração do mandato. Eu sou otário.

6. Creio que os funcionários públicos de todos os escalões são servidores dos contribuintes e têm que pautar seu comportamento pelo uso honesto do dinheiro público, pela eficiência e pela civilidade. Eu sou otário.

7. Creio que tanto assalta o patrimônio do cidadão o contribuinte que sonega imposto quanto o Estado que cobra impostos escorchantes. Eu sou otário.

8. Creio que são tão corruptos o político e o funcionário público que cobram propina quanto o empresário que oferece propina em troca de favores. Eu sou otário.

9. Creio que a impunidade é a madrinha da corrupção e que a prisão especial para portadores de diplomas universitários viola o princípio da igualdade perante a lei. Eu sou otário.

10. Creio que é mais corrupto o político que compra voto abusando do poder econômico do que o eleitor que vende voto por necessidade econômica. Eu sou otário.

11. Creio que é menos criminoso o camelô que vende produto contrabandeado para sobreviver do que o empresário que subfatura, sobrefatura, lava dinheiro e sonega imposto para se enriquecer. Eu sou otário.

12. Creio que a República é o regime político que se define pela preocupação com a coisa pública e que o clientelismo, o nepotismo, o patrimonialismo, o mensalão são a corrupção da República. Eu sou otário.

Otários do Brasil, uni-vos!

(Texto publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em 18 de agosto de 2005).

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre a incineração, o descaso e a irresponsabilidade histórica

Em 08 de junho, nosso Senado deu mostras de sua despreocupação com a história de nosso país. Segundo o que diz o artigo nº 967 do Projeto de Lei nº 166, que institui um novo Código de Processo Civil, "os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de cinco anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de um mês".

O que os "interessados" poderão fazer no prazo de um mês, se pensarmos em toda a burocratização do Estado? Apenas ver as cinzas sendo levadas pelo vento.

O segundo parágrafo do mesmo artigo versa que, "se, a juízo da autoridade competente, houver nos autos documentos de valor histórico, serão estes recolhidos ao arquivo público". Quem será a pessoa que avaliará o valor histórico da papelada? Um Juiz? Ou, em outros termos: que documento não tem valor histórico? 

Assim como tudo o que é especificamente humano, o campo historiográfico está em permanente transformação. Refinam-se os métodos, focam-se melhor as lentes, tentam-se outros viéses de análise. Novos objetos e temas são incorporados ao métier do historiador. Mas, é elementar: a história não se faz sem fontes.

Ao ler essa triste notícia, e a mobilização dos historiadores para frear esse crime, não pude deixar de encontrar semelhanças com os percalços do meu trabalho de campo.

Acredito que um dos momentos mais tristes na vida de um historiador ocorre quando ele tem a certeza de que determinadas fontes foram sumariamente eliminadas. Pois então: isso aconteceu com esta que vos tecla, há cerca de três semanas atrás. Ao vasculhar o acervo da instituição (pública, é importante frisar) que representa o cerne de análise da minha dissertação de mestrado, encontro duas singelas "Atas de Registro de Incineração".

Eis a prova empírica do crime:

"Aos doze dias do mês de setembro de mil novecentos e noventa e cinco às 14h25min, na churrasqueira e no pátio da insituição foi realizada incineração dos seguintes documentos: correspondência recebida e expedida de mil novecentos e sessenta e três a mil novecentos e oitenta e nove num total de vinte e sete caixas; fichas razão de mil novecentos e setenta e três a mil novecentos e oitenta num total de oito caixas; movimento de caixa de mil novecentos e oitenta e quatro a mil novecentos e oitenta e seis num total de três caixas; prestação de contas de mil novecentos e setenta e nove a mil novecentos e oitenta e nove num total de 15 caixas; documentos bancários de mil novecentos e setenta e quatro a mil novecentos e oitenta num total de sete caixas; material antigo em duas caixas; relatórios de setores, menos o geral, de mil novecentos e sessenta e quatro a mil novecentos e oitenta e nove, num total de oito caixas (...)".

A ata termina dessa forma, sem nomear responsáveis, sem assinaturas. Sem explicações. Não acredito que o incêndio tenha sido realizado com o objetivo de "queima de arquivo", a fim de esconder evidências ou escamotear ações escusas da instituição.

O provável motivo para a existência dessas "Atas Pirotécnicas" deve ser algo tão relevante quando a falta de espaço. O despreparo dos que trabalham do "arquivo morto" da instituição. O "não saber o que fazer com essa pilha de papéis velhos".

Ou seja: pura irresponsabilidade, falta de consciência histórica, falta de vontade política. Problemas que assolam o Estado brasileiro de ponta à ponta, de cima à baixo, de 500 poucos anos para cá.

Mas, voltando ao fato que inspirou a escrita dessas linhas: quais seriam as conseqüências de uma resolução como essa? Nas palavras de Durval Muniz de Albuquerque, atual presidente da Associação Nacional de História (ANPUH):

"Aprovada a atual proposta, estão novamente em risco milhares de processos cíveis: um prejuízo incalculável para a história do país, que já arca com perdas graves na área da Justiça do Trabalho (...). Além de grave agressão à História, a proposta também fere direitos constitucionais de acesso à informação e de produção de prova jurídica. (...). Não é possível escrever a História sem documentação e esta não pode continuar sendo concebida pelo Estado brasileiro e por nossos representantes no Congresso Nacional como um estorvo, como um lixo para o qual se devem definir mecanismos de destruição periódica. Toda documentação tem valor histórico, todo documento interessa ao historiador, a concepção de que existem documentos que são em si mesmo interessantes para a história e outras não é, há muito tempo, uma visão ultrapassada em nossa área de atuação. Não podemos aceitar que fique a cargo de um juiz, que não tem formação na área de arquivística ou da historiografia, definir se um documento merece ser arquivado ou não, tem valor histórico ou não".

É importante também lembrar que, como também o fez o comunicado oficial da ANPUH, a partir do momento em que nosso Senado aprovar essa lei, restaura-se os postulados do artigo 1.215 do Código de Processo Civil promulgado em 1973, que autorizava essa aniquilação completa de documentos. Naquela vez, após ampla mobilização, houve a suspensão da vigência do artigo (Lei 6.246).

Antes de mais nada, é importante lembrar: 1973. Final do governo do ditador Emílio Garrastazu Médici. Golpe (covarde) de Estado no Chile. Eram tempos sombrios...

Mas, e hoje?

Finalizo este texto com uma dica. Aproveitando os ares democráticos que nos envolvem - ou deveriam nos envolver - sugiro uma olhadinha no abaixo-assinado proposto pela ANPUH. Está em nossas mãos, mais uma vez, conter mais um atentado à memória de nosso país.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Budapeste", romance de Chico Buarque (Companhia das Letras, 2003).

Seria mais fácil fazer uma espécie de resenha da obra. Porém, temo que o enredo perderia seu encanto se tentasse ser explicado de uma forma linear. Decidi, então, apenas lançar alguns trechos que - por um motivo ou outro - chamaram a minha atenção.




“...de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil” (p. 7).
.

“Viajei 30 horas com o pensamento em branco” (p. 22).
.

“...estava atento a cada reticência, a cada hesitação, à frase interrompida, à palavra partida ao meio como fruta que eu pudesse espiar por dentro” (p. 35).
.

“Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela” (p. 40).
.

“Palavras recém-escritas, com a mesma rapidez com que haviam sido escritas, iam deixando de me pertencer” (p. 40).
.

“Branca, branca, branca, eu dizia, bela, bela, bela, era pobre o meu vocabulário” (p. 45).
.

“Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com o seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo do que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos depressa, antes que viessem palavras húngaras” (p. 61).
.

“...seus olhos fugiram do assunto” (p. 65).
.

“...minha cabeça já alçava vôo, meus pensamentos vinham em verso” (p. 165).
.


Um aviso necessário aos navegantes, leitores e cinéfilos: leiam o livro primeiro. O filme (vide imagem acima) é muito bem produzido, os atores são ótimos, mas tem coisas que só a leitura atenta não deixa escapar. E, às vezes, nem ela...

Ah, antes que me esqueça: com esse filme aprendi que "Feijoada completa" em húngaro é algo deveras exótico. E também que escritores sempre podem vir a ser surpreendidos pelos fãs mais inusitados...

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O império do consumo - Eduardo Galeano

Minha admiração por esse escritor uruguaio é imensa. E, mesmo que não esteja mais conseguindo me dedicar às suas leituras, minha querida amiga Andréia me brindou hoje com um de seus textos mais incisivamente realista. Por que "tirar um pouco as vendas" nunca faz mal a ninguém...


O IMPÉRIO DO CONSUMO
Eduardo Galeano

O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens imperiosas de consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio: para quase todos esta aventura começa e termina no écran do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar dívidas as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir fantasias que por vezes materializa delinquindo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?

A explosão do consumo no mundo actual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.

O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.

"Gente infeliz os que vivem a comparar-se", lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. "Quando não tens nada, pensas que não vales nada", diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: "Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações".

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a "obesidade severa" aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.

Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um património colectivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hamburguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald's, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald's dispara hamburguers às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald's de Moscovo, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas no 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mis Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juro que este ou aquele banco oferece. Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parte, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram. Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam "porque as pessoas têm o gosto de juntar-se". Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas? O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de auto-carros e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.

O shopping center, ou shopping mall, vitrina de todas as vitrinas, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça. Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas. A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

O original encontra-se em:
www.resumenlatinoamericano.org , nº 2199

Este artigo encontra-se em:
http://www.patrialatina.com.br/colunaconteudo.php?idprog=7d6044e95a16761171b130dcb476a43e&cod=1474

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Tempos de nostalgia


"Falsos retratos, pedaços de memória. São outros os fatos, mudou a história. O tamanho das coisas, o prédio gigante. Pequenos sobrados, antigo mirante. Meu mundo, tão grande no pensamento, menor a cada momento. Cidade miniatura. Perfume que me faz olhar pra trás" 
("Cidade miniatura", Márcio Faraco & Milton Nascimento)

domingo, 9 de maio de 2010

Da teoria ao humor

Ou, como diria o saudoso Barão de Itararé, "anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu".

Amnésia comandada

A recente decisão Superior Tribunal Federal (STF), que manteve inalterada a Lei da Anistia de 1979, nos leva necessariamente à pensar sobre as questões que envolvem a memória, o esquecimento e o perdão.

Segundo Paul Ricouer*, a anistia figura como uma das modalidades dos "abusos do esquecimento". Seria uma forma de "esquecimento institucional", utilizada desde a Idade Antiga, que objetiva combater delitos cometidos por ambas as partes em um período de sedição. Seu projeto confesso: a paz cívica entre os cidadãos.

Porém, sua proximidade semântica e fonética com a amnésia, conformaria um pacto secreto com a denegação (negação) da memória. Teria o efeito de apagar os fatos da memória, afirmando que "nada ocorreu". Portanto, essa forma de "amnésia comandada" leva consigo um abuso do esquecimento na medida em que
"[...] a memória privada e coletiva seria privada da salutar crise de identidade que possibilita uma reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática" (RICOUER, 2007, p. 462).
O autor continua afirmando nesse sentido que a anistia só deveria ser usada como uma forma de 'terapia emergencial'; como um signo de utilidade, não de verdade.

A fronteira que separa a anistia da amnésia poderia ser preservada a partir de um trabalho consciente da memória (e, falando psicanaliticamente, de um trabalho de luto), norteado pelo espírito do perdão.

Os que ainda votam contra essas mudanças assentam seus argumentos na idéia de que o Brasil optou pela "concórdia"; que, por ser uma sociedade avançada, optou pelo 'perdão'. Uma sociedade que luta contra seus inimigos com as mesmas armas, clamam eles, direciona-se ao fracasso.

Porém, repensar/rediscutir/rever a Lei de Anistia dos fins da ditadura civil-militar brasileira é, antes de qualquer outra coisa, pensar sobre um passado forçadamente esquecido. Forçadamente marcado pelo esquecimento. Esquecimento que é institucional, que se enraíza no político. Esquecimento que ainda não significa perdão. 

*RICOUER, Paul. O esquecimento comandado: a anistia. In: A memória, a  história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 459-462.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

León Gieco - De igual a igual

Vivendo um momento de intensas trocas culturais internacionais (vide a fundação da Embaixada do Mercosul em Down Town, habitada por três rapazes matutos ...y otras cositas más...), aproveito para deixar por estas linhas uma das muitas belas canções cantadas por essas bandas, encharcada pela história latino-americana. Tá, eu confesso: sou uma fã incontrolável do Gieco também =)


De igual a igual  
(León Gieco y Carlos Núñez)

Soy bolita en Italia,
soy colombo en Nueva York,
soy sudaca por España
y paragua de Asunción

Español en Argentina,
alemán en Salvador,
un francés se fue pa' Chile,
japonés en Ecuador

El mundo está amueblado
con maderas del Brasil
y hay grandes agujeros
en la selva misionera

Europa no recuerda
de los barcos que mandó
Gente herida por la guerra
esta tierra la salvó

Si me pedís que vuelva otra vez donde nací
yo pido que tu empresa se vaya de mi país
Y así será de igual a igual
Y así será de igual a igual

Tico, nica, el boricua,
arjo, mejo, el panameño
hacen cola en la Embajada
para conseguir un sueño

En tanto el gran ladrón,
lleno de antecedentes,
si lo para Inmigración
pide por el presidente

Los llamados ilegales
que no tienen documentos
son desesperanzados
sin trabajo y sin aliento

Ilegales son los que
dejaron ir a Pinochet
Inglaterra se jactaba
de su honor y de su ley

domingo, 4 de abril de 2010


"Aquilo que celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direito precário"

(Paul Ricouer, "A memória, a história, o esquecimento", 2007, p. 92).

sábado, 13 de março de 2010

Como na Argentina (Luis Fernando Veríssimo)

Talvez esse texto já tenha sido bastante divulgado. Talvez, os que convivem comigo já o tenham lido. Porém, em sintonia com os questionamentos que minhas postagens anteriores podem vir a suscitar, é um texto ainda necessário. Triste é indagar por quanto tempo mais teremos de lembrar (e conviver) com esses episódios. O século XXI já nos deu mostras concretas de que "mais do mesmo" está - e vai continuar - acontecendo.

À guisa de explicação:  as palavras que seguem, escritas pelo nosso brilhante Veríssimo foram publicadas no Jornal Zero Hora, em 04 de novembro de 1982. Na época, coisas "estranhas" estavam povoando as águas das costas gaúchas. Corpos que pareciam ter criado guelras disputavam lugar com os peixes e outros pequeninos seres aquáticos. A versão oficial? Um navio, vindo do oriente, havia afundado. E, como já acontece desde o Titanic, algumas pessoas encontraram em  seu destino o afogamento. Ok, desastres acontecem, não é? Uma fatalidade... Porém, dias se passavam, e mais corpos apareciam. Alguns, em lugares bastante distantes do suposto acidente. E, algo incrível: os cadáveres pareciam não ter qualquer característica fenotípica que os assemelhasse aos povos do oriente.

Como isso poderia ter acontecido? As águas gaúchas teriam tal poder de decomposição a ponto de modificar essas marcas corporais? Pois, se estivessemos em um livro do Gabriel Garcia Marquez, talvez sim. Mas o realismo fantástico, infelizmente, só povoa as linhas da Macondo ficcional.

Mas, o que seriam todos esses corpos que apareciam, do nada, em nossas calmas águas? Let's think about it: o ano era 1982. O Brasil, nesse momento, era governado por aquele presidente bonitão, lembra? Aquele que não gostava do cheiro do povo, que preferia morrer à receber um salário mínimo. Aquele dos óculos super "estilosos", esportista, bonachão. Isso, ele mesmo: Generalíssimo Figueiredo. (ironia modo [ON]) Estávamos vivendo ainda sob o jugo dos saudosos militares que, desde 1964, colocaram nossa promissora nação de volta aos trilhos da História, através da Revolução Gloriosa de 1º de abril. (ironia modo [OFF])

Nossos vizinhos fronteiriços, coincidentemente (ou não?), também estavam com seus percalços autoritários. O Uruguai, desde 1973. A Argentina, 1976. E, por aqui, em rítmo de "abertura" lenta, gradual e blábláblá ouvíamos falar dos terrores perpretados em terras hermanas. Aburdos, caros leitores! Verdadeiros absurdos!!!

E eis que alguns lunáticos conspiradores (daqueles que vêem OVNI's no sítio da vovó), insistiam em pensar na hipótese de que esses corpitchos teriam vindo boiando desde lá, até as terras gaudérias. Mas, tchê? Outros, ainda mais desvairadamente insanos, ousavam pensar que os tempos do saudoso Médici (esse, não tão bonachão como o Generalíssimo supracitado) teriam retornado. Seriam esses corpos resultados de sessões de tortura? "Deuslivre"! Não, no Brasil não!

E, assim, surge a crônica que vocês lerão abaixo. Nunca ninguém revelou o que realmente pode ter acontecido nesse episódio. As conjecturas continuam soando apenas como algo passado, que ficou nas páginas amareladas do periódico gaúcho.

Tirem suas próprias conclusões, caros leitores. Mas, lembrem-se: mais cedo ou mais tarde, cobraremos explicações!

---------------------

Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais fácil. Mas fica o corpo, como o lixo. Um dos problemas desta civilização: o que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja, os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes, ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam as mães. Como na Argentina.

Seria fácil se o corpo se extinguisse com a vida. A vida é um nada, acaba-se com a vida com um botão ou com uma agulha. Mas fica o corpo, como um estorvo. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando, sempre há alguém cobrando. As valas comuns não são de confiança. A terra não aceita cadáver sem documentos. Os corpos são devolvidos, mais cedo ou mais tarde. A terra é protocolar, não quer ninguém antes do tempo. A terra não quer ser cúmplice. Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre sobra um pé, ou uma mãe. Sempre há um bisbilhoteiro, sempre há um inconformado. Sempre há um vivo.

Os corpos brotam do chão, como na Argentina. Corpo não é reciclável. Corpo não é reduzível. Dá para dissolver os corpos em ácido, mas não haveria ácido que chegasse para os assassinados do século. Valas mais fundas, mais escombros, nada adianta. Sempre sobra um dedo acusando. O corpo é como o nosso passado, não existe mais e não vai embora. Tentaram largar o corpo no meio do mar e não deu certo. O corpo bóia. O corpo volta. Tentaram forjar o protocolo – foi suicídio, estava fugindo – e o corpo desmentia tudo. O corpo incomoda. O corpo faz muito silêncio. Consciência não é biodegradável. Memórias não apodrecem. Ficam os dentes.

Os meios de acabar com a vida sofisticam-se. Mas ainda não resolveram como acabar com o lixo. Os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais cedo ou mais tarde os mortos brotam da terra.

(Também publicado em: VERÍSSIMO, Luís Fernando. A mãe do Freud.  L&PM Editores Ltda: Porto Alegre, 1985)